sábado, julho 14, 2012

A Rosa e a cana - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 14/07


Rosa da Silva, de 36 anos, é cortadora de cana. Ela mora em Barra Bonita, interior de São Paulo. Sua rotina é assim: acorda às 4h, faz o almoço para deixar para o marido e a filha e separa as refeições que fará no serviço. Às 5h30m, está no ônibus para ir ao trabalho, onde chega às 7h30m. No dia em que conversou com a coluna, tinha cortado 70 metros, o que é pouco. No dia anterior, cortara 352, o que considerou "mais do que bom".

Rosa é a ponta de uma cadeia produtiva que chega ao posto de combustível. Um setor em crise. O governo prepara um pacote setorial. Periga ser mais um remendo.

Rosa não aceitaria ser chamada de "boia-fria". Seria ofensivo. Ao percorrer sua rotina, nota-se que a diferença não é só do nome. Ela não é contratada por um "gato", é funcionária da Raízen, empresa resultante da fusão da Shell com a Cosan. É transportada por uma empresa contratada pelo empregador. Ao chegar ao canavial, antes de começar o trabalho, faz exercícios que aprendeu com um fisioterapeuta. Trabalha cerca de uma hora, dá um tempo para fazer a primeira refeição e depois continua no batente. Encerra o expediente às 15h30m.

O setor cria hoje menos emprego do que antes; mas de mais qualidade. Poderia ser melhor. Ainda recebe pelo volume de cana que consegue cortar. Ao fim do dia, o medidor registra. Recebeu no mês passado R$ 820.

O salário melhorou, o tratamento também. Mas continua sendo temporário: é dispensada ao fim da safra. Mora numa casa pequena, mas própria, de um conjunto habitacional. Tem em casa geladeira, tanquinho e, em breve, micro-ondas. Na refeição que leva para o campo há uma mistura balanceada: arroz, feijão, carne e salada.

O que todo mundo vê como avanço, para ela é um problema: hoje, há menos queima da cana. Isso reduz o material particulado no ar que os campos de cana emitem e que faz mal à saúde de todos os que o aspiram. Sem a queima, no entanto, seu trabalho é mais difícil, o que explica a diferença de produtividade.

- A palha, sem tacar fogo, machuca muito a mão. Ontem (9 de julho, feriado da Revolução Constitucionalista), a cana estava queimada. Gosto do trabalho, mas é muito judiado. O salário tinha que ser melhor. Eles podem pagar de R$ 0,14 a R$ 0,18 o metro da cana cortada. Imagina quanto tenho que fazer para ganhar o dia. Hoje, tô detonada, a mão está formigando, inchada, porque a cana era muito pesada. Tem que ser duro na queda para aguentar esse serviço. Eu já acostumei, adoro a roça, gosto de cortar cana, dos amigos que tenho, mas é desgastante. Acho o salário baixo pelo sacrifício que fazemos.

Rosa não acredita que esse tipo de trabalho vai desaparecer, até porque as colheitadeiras arrancam a cana pela raiz, e os trabalhadores têm que replantar.

- Há mais máquinas no canavial tomando o serviço, mas temos que melhorar o que elas fazem.

O marido de Rosa trabalha na prefeitura como ajudante de motorista; o filho mais velho, que já tem 22 anos e um filho, parou de estudar na antiga sétima série e é pintor. A filha de 12 anos continua estudando. As rendas dela e do marido, somadas, chegam a R$ 2,3 mil.

- Com os dois salários, graças a Deus, não temos dívida. Só fazemos uma quando acabamos de pagar outra, mas já passamos muito aperto - conta.

Ela consegue poupar um pouco todo mês. Acaba de receber R$ 400 extra, de participação nos resultados. Guardou. Seu sonho: comprar um carro. Vermelho. Já está tomando aulas de direção.

Quando Rosa, a cortadora de cana, comprar um carro enfrentará o mesmo dilema de todos os motoristas: que combustível colocar no tanque? O que manterá sua indústria de pé ou a gasolina? O governo favorece a gasolina.

Se Rosa já tivesse carro, seria melhor abastecê-lo com álcool, porque em São Paulo está valendo a pena. Mas em vários estados, o álcool continua custando mais do que 70% do preço da gasolina e, por isso, não vale a pena.

Edison José Ustulin não conhece Rosa, mas é outra parte da mesma indústria. Ele fornece cana para a Raízen, além de ser presidente da Associação dos Fornecedores de cana de Barra Bonita. Tem uma longa lista de reclamações em que estão: custo alto da mão de obra, falta de trabalhador para algumas funções qualificadas, como motorista, custo "escorchante" de capital, condições climáticas mais adversas, alta tributação, baixa remuneração para seu produto, que está retardando a reforma dos canaviais.

Acha que se o governo quer, de fato, o álcool hidratado como parte da matriz energética brasileira, precisa manter políticas definidas por um prazo de 15 a 20 anos, porque o investimento na área agrícola precisa de dez anos para amortizar, na área industrial, até 20 anos.

- Não podemos ter uma visão imediatista. Não adianta propagar aos quatro cantos do mundo a bandeira do etanol e suas vantagens, se aqui é tratado como um combustível de segunda classe. Faltam políticas de longo prazo, financiamentos de longo prazo, redução da tributação em toda a cadeia produtiva. Há seis anos, o preço da gasolina não sobe, asfixiando o preço do etanol. O álcool naufragou, ou seja, não se consagrou por falta de políticas públicas fundamentadas nas suas próprias características.

Da conversa com Rosa e Edison já se conclui que o caso do etanol não será resolvido com mais um pacotinho.

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