domingo, julho 08, 2012
O fruto podre da cultura do dinheiro - LEE SIEGEL
O Estado de S.Paulo - 08/07
Cá estou eu, sentado em minha escrivaninha no dia 4 de julho, data em que os americanos celebram sua independência do Império Britânico, e tenho nas mãos um exemplar da revista New York. A matéria de capa da edição desta semana é Será que o dinheiro nos torna maus? Trata-se de um dos artigos mais idiotas que já li.
Fogos de artifício e desfiles me levam à beira da síndrome de estresse pós-traumático - tive um breve momento de esperança quando os cortes orçamentários dos republicanos ameaçaram minha cidade com o cancelamento de nossa celebração - e, por isso, perdoem minha petulância. A premissa do artigo diz que a riqueza amortece a empatia. Ora, a autora, Lisa Miller, de fato admite que esta ideia não é exatamente original. Este conceito remonta a... bem, a Jesus. Mas isto não a impede de desenvolver sua tese. De acordo com Lisa, a diferença entre aquilo que Jesus e praticamente todos os filósofos da civilização ocidental pensavam a respeito do empobrecimento espiritual trazido pela riqueza e aquilo que ela diz está no fato de o artigo dela tomar como base o que ela chama de "ciência". Ooooooh, a ciência.
Lisa cita o autor de um estudo publicado numa revista de psicologia segundo o qual "os ricos apresentam uma probabilidade muito maior de dar prioridade aos próprios interesses em detrimento dos interesses dos demais". (Ela é desonesta ao chamar o autor de "psicólogo". Na verdade, trata-se de um estudante de pós-graduação em psicologia.) A partir desta ideia revolucionária, Lisa ousa fazer as próprias provocações. "Quando foi a última vez", indaga ela, "que você deu prioridade aos próprios interesses em detrimento de outras pessoas?" Vejamos. Teria sido ontem, quando corri para chegar à fila do supermercado antes de outro freguês? Ou 15 minutos atrás, quando comi um pouco do atum de meu filho, apesar dos protestos dele? E isso porque não sou nem mesmo um milionário.
Ninguém precisa me contar a respeito da falta de escrúpulos dos ricos. F. Scott Fitzgerald capturou com maestria esta atitude quando, em O Grande Gatsby, escreveu sobre o rico casal formado por Tom e Daisy Buchanan, "pessoas insensíveis... Eles destruíam coisas e criaturas e então se recolhiam no seu dinheiro ou na sua vasta insensibilidade, ou no que quer que fosse que os mantinha juntos, deixando que outras pessoas limpassem o estrago provocado pelo casal". A convicção de que a riqueza é próxima da divindade já é suficientemente sociopática. Mas o sadismo que brota quando a riqueza encontra o tédio é algo que realmente merece ser observado.
Num momento em que a conscientização dos americanos em relação ao imenso abismo que separa os ricos de todos os demais habitantes deste país se encontra no seu ponto mais alto desde a Depressão, os editores de Lisa obviamente querem lucrar com esta tendência. Eles querem dar a impressão de estarem ao lado da maioria na sua preocupação com a disparidade de recursos. O problema é que os valores de mercado passaram a dominar tão completamente cada detalhe da vida americana - da procriação à educação, da nossa maneira de amar à nossa forma de morrer - que o artigo acaba defendendo a riqueza excessiva em lugar de denunciá-la.
A nova loucura americana é o casamento entre economia behaviorista, psicologia evolucionária e neurobiologia. Onde quer que olhemos, as pessoas estão escrevendo artigos ou publicando livros que prometem entender o comportamento humano ao analisarem a estrutura do cérebro. Os Estados Unidos costumavam ser fartos em intelectuais que elaboravam ideias. Agora a cultura é governada por aquilo que os sociólogos dos anos 50 costumavam chamar de "pseudointelectuais" - um termo sólido e adequado - elogiando nêutrons.
Quando os novos pseudointelectuais querem expor o ponto central de uma argumentação, eles apontam triunfantes para algum fenômeno biológico, a partir do qual extraem conclusões sociais. Assim, Lisa diz que os ricos "apresentam menos cortisol na saliva, sinal de que se sentem mais imunes às ameaças". Num livro recente, Steven Pinker nos diz que nossos cérebros estão evoluindo e se afastando da violência. (Diga isso aos sudaneses, congoleses, sírios e assim por diante.) Num editorial publicado recentemente no New York Times, o psicólogo cognitivo Drew Westen informou os leitores que era melhor o presidente Obama apresentar uma boa "narrativa", porque nossos cérebros foram ensinados a esperar histórias sobre o bem e o mal.
É claro que isto não pode ser considerado ciência por nenhum critério minimamente sério, pelo simples fato de que nenhuma dessas conclusões ser verificável pelo método científico. Para começar, ninguém pode provar que os pobres tenham mais ou menos cortisol do que os ricos em sua saliva. Além disso, como o cortisol é conhecido como "hormônio do estresse" por ser produzido em situações de estresse, os banqueiros investidores, que são algumas das pessoas mais estressadas do mundo, devem se sentir "ameaçados" o tempo todo. E nenhum experimento do mundo pode provar que o cérebro tenha sido "ensinado" a seguir uma determinada tendência social, muito menos a esperar uma narrativa.
Mas, numa sociedade dominada pelo mercado, na qual cada empreendimento humano é quantificado como custo ou benefício, qualquer pseudociência que prometa tornar a vida tão compreensível quanto uma transação comercial se tornará popular. O artigo de Lisa, que tenta superficialmente ser uma denúncia da cultura do dinheiro, é na verdade o fruto podre desta mesma cultura.
E eis que, ao chegar ao fim do artigo, percebemos que a descrição que ela faz dos inescrupulosos ricaços é na verdade bastante elogiosa. A falta de empatia significa simplesmente uma superioridade social e psicológica. "Os ricos são mais magros que os pobres", escreve ela, "e apresentam uma saúde cardiovascular melhor. Vivem mais tempo. Têm mais escolaridade. Obtêm resultados mais altos nos testes padronizados." Deixemos de lado o fato de qualidades naturais de inteligência, resistência, autodisciplina e boa saúde serem os motivos que levam as pessoas ao sucesso material, e não o contrário. O importante é massagear o ego do leitor.
Bem, talvez o dinheiro torne as pessoas insensíveis - assim como a falta de dinheiro, o dinheiro que nunca é o bastante, ou o dinheiro que é suficiente mas não chega a ser o bastante - e talvez as torne mais gentis. Mas, como sabem Lisa e seus editores, ele também faz o mundo girar.
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