sexta-feira, julho 06, 2012

Crise do Mercosul - MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 06/07


Houve um momento em que os governantes do Cone Sul se entendiam muito bem. Eles trocavam informações, equipamentos e tecnologia de tortura e morte de adversários políticos. Houve um momento em que Brasil e Argentina duvidavam tanto um do outro que os dois países tinham defensores do desenvolvimento de armas nucleares. Nessa hora de grave crise no Mercosul é um alívio pensar que já foi muito pior.

Não é para consolar, mas para que não se perca a perspectiva histórica de que, no passado, os governos dessa região erravam quando entravam em acordo e erravam quando estavam em conflito. Fizeram pactos sobre a inaceitável manutenção da ordem autoritária a ferro e fogo. Trocaram favores, prendendo e matando num país, opositores dos governos de outros países. Não se sabe ainda hoje toda a verdade sobre os crimes executados sob a capa de acordos de cooperação militar.

No domingo, este jornal publicou reportagem da jornalista Junia Gama mostrando que no governo do general Ernesto Geisel o Brasil "esmerilhou" armas para enviá-las a Augusto Pinochet. As ordens eram estas e a palavra "esmerilhar" significava tirar os símbolos da República brasileira nas armas enviadas por Geisel para ajudar Pinochet a "manter a ordem interna". Ela foi mantida à custa de 3 mil mortes. Quantas foram com armas brasileiras "esmerilhadas"?

Ao mesmo tempo em que cooperavam para cometer crimes, desconfiavam uns dos outros. Entre Brasil e Argentina a tensão era alimentada por quem queria, aqui e lá, desenvolver tecnologia de artefatos nucleares. Um dos passos importantes que precederam o Mercosul foi o acordo de cooperação nuclear entre Brasília e Buenos Aires, permitindo que um país fiscalizasse o programa do outro. O segundo passo para a pacificação foi o acordo sobre o aproveitamento energético dos rios que os países compartilham.

O Mercosul permitiu o aumento exponencial do comércio, dos negócios, das parcerias entre os países do grupo. A cláusula democrática nasceu das feridas que tinham ficado dessa cooperação macabra da Operação Condor e outros pactos. Os países se dispunham daquele momento em diante a reduzir as barreiras comerciais entre os mercados do bloco, a negociar novos campos de integração e a manter, como base de tudo, a ordem democrática.

Os episódios das últimas semanas mostraram que esses valores foram relativizados por uma parte da opinião pública e pelos governos do bloco. Basta estar escrito na Constituição de um país, que qualquer barbaridade passa a ser democrática. Já a indignação dos governos é seletiva. Brasil e Argentina ficam indignados com o que acontece no Paraguai, mas aceitam as violações, o que ocorre com frequência na Venezuela. Já o Uruguai aceita a pressão dos grandes e depois se afunda numa crise interna. A partir dessa assimetria de tratamentos, o bloco entrou numa grave crise política que terá novos desdobramentos.

O Mercosul acaba de completar 21 anos. Em duas décadas, o comércio do Brasil com os países do bloco saiu de US$ 4,5 bilhões para US$ 47 bilhões. Multiplicou por dez. Houve um aumento enorme de cooperação, associações empresariais, crescimento do turismo.

Esses claros sinais de sucesso, no entanto, não apagam o fato de que há uma grave crise no Mercosul. Como disse o embaixador José Botafogo Gonçalves na edição de ontem deste jornal: o Mercosul pode acabar se não for levado a sério.

A Argentina criou barreiras tarifárias e não tarifárias para os países do bloco; a pior delas foi o fim da licença automática de importação. Negócios entre empresas do setor privado estão congelados pela arbitrariedade com que são liberadas as licenças de importação. Brasil e Argentina têm opiniões opostas sobre a China. A Argentina quer um acordo do Mercosul com os chineses e o Brasil eleva as tarifas de importação de alguns produtos.

Mais importante do que divergências de opinião, que sempre ocorrerão em qualquer parceria, é o fato de que o Mercosul não sabe o que quer ser. Essa falta de projeto está minando as bases do bloco. A crise política provocada pela entrada da Venezuela, se não for resolvida, pode ser o começo do fim.

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