segunda-feira, junho 25, 2012
Vergonha em dólar - LÚCIA GUIMARÃES
O Estado de S.Paulo - 25/06
NOVA YORK - A cena provocou choque e repulsa. Até sexta-feira passada, já havia sido assistida online por mais de 3 milhões de pessoas. Não, não se tratava de um massacre em curso na Síria. Era um vídeo capturado por celular que exibia, durante dez minutos intermináveis, o perfil de Karen Klein, de 68 anos, a bordo de um ônibus escolar, ouvindo passivamente os xingamentos à sua aparência e pessoa, despejados sobre ela por um grupo de estudantes de 12 e 13 anos. Não vou repetir aqui os ataques proferidos pelas criaturas aberrantes que temos de chamar de garotos. Quem tiver estômago pode clicar no vídeo. Alerto apenas que, depois de tentar se ausentar mentalmente daquele inferno, Karen caiu no choro quando seus algozes mirins disseram: "Você não tem família porque todos se suicidaram". O filho mais velho de Karen se suicidou, há dez anos.
Transformada instantaneamente em carniça de talk shows, a modesta viúva com oito netos, da cidade de Greece, ao Norte de Nova York, atraiu simpatia internacional. Um website desses que levantam fundos para causas ou projetos foi aberto com o objetivo de arrecadar o bastante para a monitora escolar tirar umas férias inesquecíveis. Enquanto escrevo, o site já arrecadou meio milhão de dólares. Uma companhia aérea, nenhuma surpresa, vai levar a família de Karen de graça para um parque da Disney.
Pelo menos duas das pestes identificadas no vídeo receberam ameaças de morte e a polícia está patrulhando seu endereço afluente. Os dois emitiram comunicados de desculpa que contêm a sinceridade de um vendedor de carro usado. Um psicólogo especialista em bullying, que já devia estar de plantão à espera das chamadas de repórteres, pontificou: a dinheirama doada reflete a vergonha que a nossa sociedade sentiu do incidente.
Como a enxurrada de doações online partiu do mesmo planeta que produz a enxurrada de ameaças de vingança online, tenho dificuldade para acreditar na teoria da contrição coletiva. Sou tentada a encontrar outra motivação para a generosidade viral e oportunista, dispensada por tantos que não se sentem mobilizados com tragédias fartamente documentadas, mas não capturadas por celular. É o fenômeno do Kony 2012, conhecido como slacktivism, a militância preguiçosa, a compaixão praticada sem levantar do sofá. Afinal, disse a própria monitora, atordoada com a atenção, "eu não fiz nada" para ganhar esta recompensa. É como se ela tivesse acertado a quina de uma loteria escatológica.
Há uma ironia cruel no fato de que, enquanto Karen Klein percorria o circuito de entrevistas, em algum lugar neste país, um jovem anônimo esperava o veredicto de um júri na Pensilvânia. O réu era Jerry Sandusky, o ex-técnico assistente do lendário time de futebol americano da Penn State University, o homem que estuprou esse jovem em 2001, quando ele não devia ter mais de 11 anos. Como sabemos disso? A testemunha que flagrou o estupro do garoto de 11 anos no chuveiro era ninguém menos do que o novo técnico assistente, Mike McQueary, um latagão que tinha então 27 anos, 1,93 m de altura e achou melhor correr para casa e contar para o pai. O menino, provavelmente recrutado na ONG de assistência a crianças pobres fundada pelo pedófilo Sandusky, nunca foi identificado. O ex-presidente e vice-presidente da Universidade decidiram que não seria "humano" delatar o estuprador aos serviços sociais. Sandusky continuou abusando sexualmente de meninos até ser preso no ano passado. Na sexta-feira à noite, Sandusky ouviu a palavra "culpado" 45 vezes no tribunal. Vai morrer na cadeia. A Penn State University agora se arma para comprar o silêncio das vítimas.
O mesmo especialista em bullying ouvido na reação ao caso da monitora Karen Klein lembrou que as crianças hoje são criadas num mundo de reality shows, em que xingar e humilhar é entretenimento. Mas a vergonha que ele detecta na generosidade financeira online não me parece a moeda corrente.
A vergonha e também o orgulho são emoções centrais da honra, escreve o filósofo Kwame Anthony Appiah, um dos mais interessantes intelectuais públicos destas paragens. Mas a honra, lembra ele, independe da moralidade. Há uma tensão entre as duas. Que o digam as mulheres ameaçadas de assassinatos por honra no Paquistão. A honra requer o respeito de um grupo e o controle da imagem. A exposição viral permitida pela tecnologia pode até provocar embaraço, como é o caso dos responsáveis pelo tormento de Karen Klein.
Mas não há número de cliques que preencha o vácuo moral.
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