segunda-feira, junho 04, 2012

Um tiro no próprio pé - REVISTA VEJA


REVISTA VEJA

A abordagem do ex-presidente Lula ao ministro Gilmar Mendes era parte do audacioso plano do PT de usar a CPI do Cachoeira para constranger adversários, o procurador da República, a imprensa e juízes do Supremo Tribunal Federal, numa ação coordenada para atrapalhar o julgamento do mensalão

DANIEL PEREIRA 


O presidente americano John Kennedy, assassi­nado em 1963, deu rele­vo ao ditado segundo o qual "a vitória tem mui­tos pais, mas a derrota é órfã". Tivesse sido bem-sucedida a estratégia de instalar uma Comissão Parla­mentar de Inquérito (CPI) no Congres­so e desqualificar o julgamento dos 36 réus do mensalão, na maioria petistas, sua paternidade seria atribuída ao ex­presideme Lula. Como deu tudo errado para as pretensões iniciais de Lula e do núcleo duro dos mensaleiros, a derrota agora, pobrezinha, está vagando pelos corredores do lulismo em busca de al­guém que assuma a paternidade. O ver­dadeiro pai do desastre, Lula, como é do seu feitio, já renegou a criatura. O culto à personalidade de Lula é sagrado no petismo. Lula nunca erra. É induzido ao erro. Entre as alas do PT mais direta­mente envolvidas com a instalação da CPI e a definição de seus alvos, já co­meçou o tradicional jogo de "toma que o filho é teu". Afinal, ninguém quer ser lembrado no futuro como o cérebro alo­prado por trás de um plano que, em vez de lançar uma cortina de fumaça sobre o episódio, colocou o mensalão na vitri­ne principal da rica galeria de escânda­los de corrupção do governo Lula.

Por que mesmo fracassou a combi­nação do ex-presidente? Mesmo que seja para enobrecer indevidamente um episódio de política nanica, o paralelo mais exato para explicar o tiro no pró­prio pé disparado pelos comissários petistas é o famoso Plano Schlieffen, que deveria, em apenas duas semanas, ter dado à Alemanha uma vitória mili­tar completa sobre a França e a Rússia na I Guerra Mundial. Como se sabe, a guerra durou quatro anos e a Alemanha , perdeu. A resposta dos especialistas ao retumbante fracasso da estratégia tra­çada pelo conde Alfred von Schlieffen, chefe do Estado-Maior alemão, entrou para a história das guerras por sua bru­tal simplicidade: "Para funcionar, o Plano Schlieffen exigia que tudo desse certo para os alemães e tudo desse er­rado para os inimigos". A estratégia do lulismo com a criação da CPI deu com os burros n'água por essa mesma ra­zão. São poderosas e. incontroláveis as forças que se libertam quando uma CPI é instalada. Lula e seus auxiliares nao conseguiram controlá-las confor­me o planejado.

VEJA revelou na edição passada uma investida de Lula que, se bem­ sucedida, poderia minorar o fracasso do plano principal. Em uma conversa com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex­presidente tentou convencer o magistrado da necessidade de adiar o início do julgamento, previsto para o próximo semestre. "É inconveniente julgar esse processo agora", disse Lula a Gilmar. O adiamento desejado por Lula traria dois benefícios ao PT. Uma decisão tomada em 2013 aumen­taria a probabilidade de prescrição de crimes (veja o quadro na pág. ao la­do). Além disso, livraria o partido do risco de disputar as eleições munici­pais deste ano, nas quais espera con­quistar até 1000 prefeituras, com uma condenação capital nas costas.

O ex-presidente insinuou que, se Gilmar não agisse de acordo com' os propósitos do PT, o ministro do STF poderia ser investigado pela CPI. A ameaça, de tão grave, provocou a rea­ção contundente de Gilmar e de outros ministros da corte, que viram na ação do ex-presidente uma clara tentativa de intimidação da Justiça - movimento tão indecoroso que, ao contrário do imaginado pela falconaria petista, se voltou contra o partido, ao consolidar a necessidade de uma pronta decisão so­bre o caso. Mais um tiro no próprio pé.

Nesta edição, VEJA revela a existên­cia de um documento preparado pelos petistas para guiar as ações dos compa­nheiros que integram a CPI do Cachoei­ra. Lendo o material, é possível imaginar a atmosfera pesada que pontuou a con­versa entre o ministro e o ex-presidente, ocorrida no dia 26 de abril, no escritório de Nelson Jobim, ex-presidente do STF e amigo de ambos. O nome de Gilmar faz parte de uma lista de alvos preferen­ciais do PT que precisariam ser atingi­dos pela CPI do Cachoeira. Outro mar­cado na lista para sofrer ameaças e hu­milhações é Roberto Gurgel, procura­dor-geral da República, a quem caberá defender a punição dos mensaleiros na abertura do julgamento no STF. O guia de ação na CPI produzido pela lideran­ça petista, e ao qual VEJA teve acesso, não deixa dúvida sobre as reais inten­ções do grupo mais umbilicalmente li­gado a Lula. Os alvos preferenciais são os oposicionistas, a imprensa e mem­bros do Judiciário que, de alguma for­ma, contribuíram ou ainda podem con­tribuir para que o mensalão seja julgado e passe, portanto, a existir oficialmente como um dos grandes eventos de cor­rupção da história brasileira - e, sem dúvida, o maior da República.

o documento foca em especial Gil­mar Mendes. São dedicados a ele qua­tro tópicos: "O processo da Celg no STF", "Satiagraha, Fundos de Pensão, Protógenes", "Filha de Gilmar Men­des" e "Viagem a Berlim". São referên­cias a episódios em que Gilmar Mendes tem culpa no cartório? Não. São todas questões já levantadas· contra o minis­tro pelos mensaleiros e seus defensores e que, uma vez esclarecidas, se mostra­ram fruto apenas do desejo de desqua­lificar um integrante do STF que os petistas consideram um possível voto contra seus companheiros réus. Se Lula foi mesmo induzido ao erro por relató­rios dessa natureza, é uma questão ain­da em aberto. Mas que ele se entregou de corpo e alma ao erro não há a menor dúvida. Na conversa com Gilmar, de­pois de dizer que controlava a CPI e insinuar que poderia proteger o ministro de uma eventual investigação, o ex­presidente citou um dos tópicos do do­cumento: "E a viagem a Berlim?", per­guntou. No documento do PT está es­crito que "há notícias de que Cachoeira esteve na Europa" na mesma data que Gilmar. "Estamos lidando com gângs­teres, com bandidos que ficam plantan­do essas informações", reagiu o minis­tro do STF, que foi obrigado a explicar que viaja sempre para Berlim, onde mora sua filha.

Lula bem que tentou. Dispensou as liturgias esperadas de um ex-presiden­te, brandiu obscenamente versões co­mo se fossem fatos, atropelou a lei, mandou às favas os bons costumes, a educação e a civilidade. Tudo para ten­tar o impossível: apagar da memória recente da nação que sob seu governo se deu o maior escândalo de corrupção da história da República. Foi patético. E inútil. Revelada sua abordagem a Gilmar Mendes no escritório de Nel­son Jobim, a resposta de Lula veio por meio de uma nota curta e vacilante, em que se dizia "indignado". Foi um tiro no próprio pé. A necessidade de julgar O mensalão tornou-se ainda mais pre­mente. Disse Carlos Ayres Britto, pre­sidente do Supremo: "O que a socieda­de quer é compreensível: o julgamento do processo, sem predisposição, seja para condenar, seja para absolver. O processo está maduro, chegou a hora de julgá-lo". Alguns ministros tornaram pública sua opinião a respeito do encontro entre Lula e Gilmar. Com ex­ceção do ministro Marco Aurélio Mello, para quem Lula, como líder do PT, tem todo o direito de abordar o tri­bunal e expor sua insatisfação com a coincidência do julgamento com as eleições municipais de outubro, os outros que se manifestaram o fizeram de modo crítico. O mais contundente foi o ministro Celso de Mello, decano do tribunal: "Se ainda fosse presidente da República, esse comportamento seria passível de impeachment". Em inusita­da demonstração de autonomia, alguns petistas discordaram, à boca pequena, claro, da atuação de Lula. Esses des­contentes lembraram que é errado dar como certo o voto de Gilmar Mendes na condenação dos mensaleiros. Eles lembram que Gilmar Mendes votou contra a inclusão de Luiz Gushiken, ex-ministro de Lula, na lista de réus do mensalão. Gilmar também deu voto contra a abertura de inquérito para apurar a responsabilidade do ex-minis­tro Antonio Palocci no famoso episó­dio da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Sob a pro­teção do anonimato, é muito mais fácil hoje do que há algumas semanas en­contrar petistas fortemente críticos da estratégia. de atacar a imprensa e envolver o procurador Roberto Gurgel na CPI do Cachoeira. No documento feito pelos petistas empregados na li­derança do partido no Congresso, Gur­gel é falsamente acusado de engavetar o caso conhecido como Operação Ve­gas, em que a Polícia Federal investi­gou o jogo ilegal no Brasil. O docu­mento do PT dá como fatos as mais absurdas invencionices contra a im­prensa. Falácias fartamente marteladas criminosamente por blogs sustentados por verbas públicas de instituições do­minadas por petistas. A avaliação de deputados e senadores do PT, confir­mada por pesquisas de opinião, é que o partido, até agora, é o maior perde­dor na CPI do Cachoeira.

Na semana passada, a comissão de inquérito aprovou a convocação do go­vernador Agnelo Queiroz, do PT de Bra­sília. O plano inicial de Lula era levar à CPI apenas o governador tucano Marco­ni Perillo, de Goiás, também convocado. Os integrantes da CPI decidiram ainda quebrar o sigilo da empreiteira Delta em nível nacional - quando o plano origi­nal de Lula era circunscrever a apuração do propinoduto da empresa a suas ativi­dades no Centro-Oeste. Como se verá na reportagem seguinte, a CPI do Cachoei­ra poderá ser chamada agora de CPI da Delta. Um tiro de bazuca no pé do PT .•

JOBIM MATA A COBRA MAS NÃO MOSTRA O PAU

Há duas semanas, em duas conversas telefônicas com VEJA, Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Fede­ral (STF) e ex-ministro da Justiça, relutan­temente, confirmou ter sido o anfitrião do agora famoso encontro do ex-presi­dente Lula com Gilmar Mendes, ministro do STF. Na primeira conversa, Jobim ne­gou tudo, usando como prova a data (er­rada) do encontro. Naquele dia, disse Jo­bim, ele não podia ter se encontrado com os dois em Brasnia pois estava em São Paulo participando de um evento promovido pela Federação das Indústrias do Estado, a Fiesp. De posse da informa­ção correta sobre a data do encontro, 26 de abril, VEJA voltou a ligar para Jobim. Sem outro pretexto para encurtar a con­versa, Jobim confirmou que Lula e Gilmar se encontraram e conversaram em seu escritório no Lago Sul de Brasília. Sus­tentou durante algum tempo que o en­contro fora fortuito. Lula antecipara a da­ta de uma visita a ele prometida havia muito tempo e calhou de cumprir a pro­messa justamente no dia em que Gilmar também estava no escritório de Jobim. Confirmou depois que, sendo amigo de ambos, patrocinou a conversa. "Eles fala­ram sobre o julgamento do mensalão?" Jobim respondeu: "Até onde eu sei, foi uma conversa amigável sobre temas de interesse institucional e atualidades da política, coisa normal em se tratando de um ex-presidente e um ministro do STF". VEJA insistiu: "Lula disse a Gilmar que seria mais adequado adiar a votação do mensalão?". Jobim respondeu: "Não teve pedido nenhum". Como a pergunta não queria calar, Jobim perdeu a paciência: "Me deixa fora disso. Tenho uma boa re­lação com Lula e quero preservá-Ia". Na edição da semana passada, VEJA publi­cou a história do encontro conforme dele se recordava Gilmar Mendes. Jobim foi citado na reportagem no exato contexto acima. Ouvido pelos jornais depois da publicação da reportagem de VEJA, Jo­bim disse, em linhas gerais, a mesma coisa que revelou a revista - no que foi interpretado como tendo desmentido o teor da conversa. A dois políticos de sua confiança, um do PSDB e outro do PT, Jobim contou que a versão mais próxima do encontro foi aquela relatada por Gil­mar Mendes. Lauro Jardim, no Radar desta edição, revela que o próprio Lula disse a um presidente de partido que fa­ria gestões sobre o mensalão junto aos ministros do STF. Como ensinava Lyndon Johnson, o presidente americano, "a coi­sa mais importante que um homem tem para lhe dizer é justamente o que ele es­tá tentando não dizer'. Em uma corrup­tela do ditado popular brasileiro, pode­se afirmar que Jobim "matou a cobra mas não quis mostrar o pau".

OS MENSALEIROS E O RISCO DA PRESCRiÇÃO 

Se os principais réus forem condenados à pena mínima, apenas três terão de cumpri-Ia

se o julgamento do mensalão acon­tecesse hoje e os principais réus fossem condenados à pena mínima de prisão pelos crimes de que são acusa­dos, apenas três deles (o empresário Marcos Valério, o deputado João Pau­lo Cunha e o ex-deputado Roberto Jef­ferson) teriam de cumprir a decisão. Os demais estariam livres, dado que suas penas já teriam prescrito. A pres­crição é um instrumento do Código Penal que tem por objetivo proteger os cidadãos da morosidade da Justiça ­e não provocar a impunidade. A lei entende que ninguém pode ser proces­sado por tempo indeterminado e, portanto, ter sua vida paralisada, sua ido­neidade mantida em dúvida sem um pronunciamento final da Justiça. A prescrição pode ocorrer até mesmo an­tes do julgamento, com base em um cál­culo que considera a pena máxima pre­vista para o crime, a pena em abstrato. Nessa circunstância, o prazo é contado a partir do recebimento da denúncia. No caso do mensalão, só haveria risco de prescrição antes do julgamento se ele não se realizasse até 2015, o que é im­provável. A prescrição que ocorre de­pois do julgamento varia de acordo com a pena efetivamente recebida. Quanto menor a pena, mais curto o prazo de prescrição. Para escolher a extensão da pena, os juízes obedecem a critérios ate­nuadores. Réus primários e de bons an­tecedentes, caso da maioria dos mensa­leiros, tendem a receber a punição míni­ma prevista no Código Penal. Mas quem é condenado por mais de um crime no mesmo julgamento, risco que corre a maioria dos mensaleiros, pode ter a pe­na agravada.

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