domingo, junho 24, 2012

Um ourives e luthier de poesia penetrante - HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO


O GLOBO - 24/06

No princípio, era o choro, quase que apenas o choro. Explica-se: a casa, no bairro de Botafogo, era dominada pelo majestoso violão de Benedito Cesar, pai de Paulo Cesar Baptista de Faria, que futuramente ganharia nome artístico: Paulinho da Viola. Na casa viviam a avó, a mãe e o irmão caçula de Paulo Cesar, Chiquinho. Este aí ficava de lado com seu cavaquinho, ou então consertando rádios, vitrolas, gravadores e também instrumentos musicais. Era uma paixão adolescente que, acho eu, iria influenciar o irmão mais velho quando ele, já famoso, entulharia a garagem de sua casa na Barra com carcaças de carros antigos, ou se enfurnava numa imensa e bem fornida oficina de marcenaria, onde se transfigurava, entre outras coisas, em luthier.

O ambiente era dominado quase que apenas pelo choro. Mas convenhamos que era impossível não ouvir as rádios Nacional e Tupi nem ficar indiferente, quando se aproximava o carnaval, aos sons que vinham dos blocos de rua do bairro de Botafogo. Paulinho se escafedia para Jacarepaguá, onde ajudou a organizar o bloco Foliões da Anália Franco. Mas foi seu tio, Oscar Bigode, quem fez com que o jovem entrasse para a Portela, sua escola de coração. O mundo musical de Paulo Cesar ia ganhando esses contornos, abastecendo-se dessas informações, captando esses sinalizadores que incorporaria, depois, à sua carreira.

Tudo mudava quando Benedito Cesar tomava, coincidentemente, o rumo de Jacarepaguá -- mas longe dos tamborins, ganzás e cuícas que fascinavam o filho mais velho. A casa-alvo da visita era enorme, circundada por um grande muro e cheia de árvores -- e a mais frondosa e tonitruante tinha nome e sobrenome: Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolim. E as rodas de choro rapidamente se formavam em torno do anfitrião. Quem passou pelos saraus do Jacob jamais esquecerá aquelas noites. Paulinho, inclusive.

E aí já estamos em meados da década de 1950.

"Olá, como vai?" "Eu vou bem, e você?" Poderia ter sido o diálogo quando fui pagar uma fatura no banco onde Paulinho dava expediente no balcão. Ele conta melhor esse nosso encontro do que eu. A partir dali, amigos e parceiros -- e ele adentrando no "já vi tudo" onde eu morava no Beco do Rio, vizinho à Taberna da Glória e ao maestro Moacir Santos. Minha casa tinha visitantes ilustres, e um deles era Ismael Silva. Os violões clássicos adentravam no apartamentinho que tinha apenas sala, banheirinho e uma quitinete sem-vergonha, onde mal cabia uma geladeira. Reza a lenda que ali, naquele moquifo, fui seu primeiro parceiro. Que Paulinho relembre essa história.

Estamos já na década de 1960. Não, Paulinho ainda não se aventurara a ir profissionalmente ao encontro da música. Isto se deu quando o levei para o então recém-aberto Zicartola, na Rua da Carioca, e onde Cartola deu a ele seu primeiro cachê como músico. Definia-se, ali, o seu destino. E por lá ficou tocando ao lado de Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Clementina de Jesus, Cartola e os convidados ilustres que iam receber a Ordem da Cartola Dourada, artifício que criei de parceria com Zé Keti para impulsionar as rodas de samba que ele, Zé, criara.

E o que fazia o tímido Paulinho naquele palco diminuto? Acompanhava, simplesmente acompanhava ao violão. Até o descobrirem cantor e compositor levou um tempo.

Os blocos de rua que fizeram com que Paulinho cruzasse seu caminho com o grande Mauro Duarte (Mauro Bolacha), Zorba Devagar, depois Jorge Mexeu e Catoni, não o fizeram afastar-se do choro. E Zé Keti, quietinho, estava sempre por perto, ardilando coisas, botando lenha na fogueira. Era um agregador.

Em dezembro de 1964, vamos assestar os refletores do teatro Jovem na figura extraordinária de Clementina de Jesus, numa série chamada "Menestrel", criada por mim -- e que juntava um músico popular a um erudito. Acompanhando-a, quem? Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Benedito Cesar. Turíbio Santos abria o recital. Kleber Santos, dono do teatro Jovem, me chama a atenção: "Você tem um show pronto em suas mãos." Nascia o "Rosa de Ouro", com Clementina, Aracy Cortes e os Cinco Crioulos: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento, além de um palco despojado, onde projetávamos slides e as vozes de Almirante, Pixinguinha, Lúcio Rangel, Jota Efegê, Elizeth Cardoso e quem mais se possa imaginar. Enfim, a antítese de tudo o que estava na moda. Era uma estética que rádios e TVs ignoravam.

A carreira solo de Paulinho foi iniciada com um disco em que colocamos, com intensa alegria, a música de Valzinho -- entre outros compositores. Valzinho passaria a ser um símbolo de tudo aquilo que não era midiático, sinônimo de total invisibilidade musical. Admirado por Radamés Gnattali e Tom Jobim, ainda assim vivia nas sombras.

Época de festivais, da bossa nova, da jovem guarda de Erasmo e Roberto, o choro praticamente declinando após a morte de Jacob em 13 de agosto de 1969. Falei em 69? Pois um ano depois nosso Paulinho ilumina a década de 1970 produzindo um LP arrebatador com a Velha Guarda de sua amada Portela, e de uma certa forma retomando a linha estética trazida pelos discos do "Rosa de Ouro" e pela discografia de Clementina, da qual participa ativamente.

Há que se revirar a ampulheta, deixar que a areia escorra e nos faça relembrar todas as vertentes que se atravessaram em sua vida, desde o choro tocado com solenidade em sua casa por Benedito Cesar e na de Jacob do Bandolim, e também as sonoridades dos blocos de Botafogo e Jacarepaguá, mais todas as informações trazidas por Valzinho e outros músicos iguais a ele e a Elton Medeiros, seu parceiro mais constante, fizeram com que fosse esculpido esse grande personagem que é Paulinho da Viola, preso à tradição do samba e ao mesmo tempo adentrando a vanguarda ao compor "Sinal fechado", repleto de signos e sinais metafóricos, para, em seguida, despir-se dessa ruptura e de novo vestir, com orgulho, os seus paramentos de sambista.

Vejo-o assim: ourives e luthier a bordar no pentagrama melodias de uma aparente simplicidade. Ourives e luthier de versos desprovidos de arabescos, mas de poesia penetrante que jamais rasteja para a vulgaridade. Nenhuma informação desperdiçada, tudo reciclado em sua arte enxuta, antimidiática por natureza.

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