sábado, junho 02, 2012
Sangue nas mãos - SÉRGIO AUGUSTO
O Estado de S.Paulo - 02/06
Se ela fosse uma vampira, já poderia ter sido liquidada com uma estaca no peito. Mas guerra é guerra - e a Civil Espanhola continua perturbando até hoje a vida de quem nasceu muitos anos depois de seu término oficial, em 1939. Sua última baixa foi o ex-juiz Baltasar Garzón, nêmesis dos falangistas com sangue nas mãos, profissionalmente executado meses atrás, sob aplausos da direita e de quem teme pagar por crimes cometidos até mesmo em nome de Deus.
Minto. Sua última baixa foi a História; ou, melhor dizendo, o rigor histórico.
No verbete sobre Francisco Franco no Dicionário Biográfico Espanhol da Real Academia da História, o ex-ditador não é tratado como tal, mas como um estadista tout court. Seria um erro de avaliação venial fosse o dicionário um empreendimento editorial privado, financiado por viúvas do franquismo, não uma obra monumental bancada pelo erário, que em quatro anos de execução consumiu € 6,4 milhões.
Historiadores, acadêmicos, políticos e jornalistas vinham protestando contra a omissão do qualificativo "ditador" desde maio de 2011, quando saíram os primeiros 25 dos 50 volumes da enciclopédia, ainda sem prazo para ser concluída pelos milhares de especialistas contratados para o projeto. "Uma ofensa à inteligência e à cultura democrática", assim sintetizou um furioso historiador madrilenho a impressão generalizada de seus pares. Ano passado, o ex-presidente Zapatero suspendeu a subvenção temporariamente, mas com a volta do Partido Popular ao poder, mais € 193 mil foram aprovados, em março deste ano. O PP, vale lembrar, foi fundado na década de 1970 por Manuel Fraga Iribarne, ex-ministro de Franco e seu herdeiro ideológico.
Na semana passada, a Real Academia pôs uma pedra sobre a discussão: nenhuma alteração será feita no verbete sobre Franco, capciosamente entregue a uma figura suspeitíssima, o historiador Luis Suárez Fernández.
Ex-integrante do regime franquista, membro da Fundação Francisco Franco e presidente da Irmandade do Vale dos Caídos (aquele mausoléu-monumento kitsch construído com o suor de 14 mil prisioneiros republicanos, onde o ditador repousa o sono eterno), Fernández não podia ter sido sequer cogitado para o serviço. A seu ver, Franco montou "apenas" um regime autoritário, mas não totalitário, tese somente defensável se omitidos os julgamento sumários e as execuções impostos pelo ditador, durante e depois da Guerra Civil.
Dos muitos relatos que li sobre a mais terrível guerra intestina do século 20 (Hemingway, George Orwell, vários espanhóis), nenhum me impressionou mais que o recente The Spanish Holocaust, do hispanista britânico Paul Preston. São 700 páginas de puro horror, fascinante narrativa e acachapante documentação. O subtítulo da edição em inglês (Inquisição e Extermínio no Século 20), além de evocar procedentes similaridades com o modus operandi do Santo Ofício, é mais abrangente que o da tradução espanhola (Ódio e Extermínio Durante a Guerra Civil e Depois), bem mais objetivo. O segundo advérbio faz a diferença. A fúria genocida dos vencedores não respeitou os tempos de paz. A ditadura franquista durou mais do que os 34 anos em que Franco esteve efetivamente no comando do país.
Preston dedicou a vida a pesquisar e devassar a Guerra Civil espanhola e seus protagonistas. Escreveu uma biografia devastadora de Franco (El Grand Manipulador), comparando-o aos tiranos de seu tempo (Stalin, Hitler, Mao) e a cesaristas mais recentes, como Fidel. Desmontou a visão hagiográfica que o apresenta como um gênio militar e político, que salvou os espanhóis do comunismo e da 2.ª Guerra, abrindo as portas do país para a modernidade.
Cauteloso, astucioso, manipulador, Franco inventou para si diversas máscaras: de legionário cinematográfico, estilo Beau Geste, a "pai da pátria", a derradeira do estoque. Tímido, feio, baixinho, mirrado, voz estridente, refugiou-se na fantasia. Tinha um lado panaca, que às vezes se sobrepunha aos demais. Em 1940 comprou de um vigarista austríaco o segredo de uma "gasolina instantânea", extraída da água de um rio espanhol. Embora aficionado de loterias, jamais, que se saiba, comprou um bilhete premiado.
Friamente cruel, era implacável com os inimigos. E com quem dele discordasse. Ainda estava no Marrocos, aquecendo os motores para invadir a Espanha e derrubar o governo republicano democraticamente eleito em fevereiro de 1936, quando mandou fuzilar um legionário que se queixara da qualidade do rancho servido no acampamento.
O ditador demorou um bocado para dar seu último suspiro, em novembro de 1975. Durante três meses, o comediante Chevy Chase abriu seu telenoticiário no Saturday Night Live com a seguinte manchete: "Premier Francisco Franco is still seriously dead". Entrava semana, saía semana, e o premiê espanhol "continuava seriamente morto". Hilário. Foi a única coisa engraçada que o generalíssimo involuntariamente produziu na vida.
O franquismo não foi enterrado com o caudilho porque, lastimavelmente, sobreviveu ao criador. Prolongou sua agonia até, pelo menos, o frustrado golpe do tenente-coronel Antonio Tejero Molina, em 23 de fevereiro de 1981. Molina invadiu a Câmara dos Deputados, em Madri, para melar na marra a transição da Espanha para a democracia. Acabou atrás das grades. Esse ato de patética truculência caudilhesca é o tema do último romance de Javier Cercas, Anatomia de Um Instante, que a Editora Globo acaba de traduzir e o autor, que ganhou merecida fama internacional com uma ficção ambientada na Guerra Civil, Os Soldados de Salamina, virá lançar na próxima Flip.
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