segunda-feira, junho 25, 2012
Querem ressuscitar o baraço e o cutelo - MANOEL ALBERTO REBÊLO DOS SANTOS
O Globo - 25/06
A declaração de independência dos Estados Unidos, redigida basicamente por Thomas Jefferson, afirmou o rompimento das 13 colônias com a Inglaterra porque:
"O rei da Grã-Bretanha tenta impor-nos sua tirania fazendo os juízes dependentes de sua vontade..."
Como se observa, já o registro de nascimento da nação americana se insurgia contra o absolutismo colonial diante de sua incompatibilidade com um sistema de direitos garantido pela independência judicial.
Os últimos episódios ligados ao processo do mensalão evidenciam uma canhestra tentativa de mudar o calendário do julgamento. Não seria conveniente, na ótica do ex-presidente Lula, realizá-lo antes das eleições municipais. A razão dessa apontada inconveniência não mereceu justificação mais clara, ficando no ar que eventual condenação de alguns réus poderia prejudicar seu projeto de poder.
Nem bem superado esse putsch da indecorosa tentativa de emparedamento do STF - mediante controle da pauta de um dos mais rumorosos julgamentos da história do tribunal - e a marcha da insensatez prossegue, agora com uma aparente troca de bastão.
De qualquer modo, o ex-presidente não apareceu bem na foto como autor da espantosa pressão sobre nossa mais alta Corte de Justiça, pois, como lembrou recentemente o jornalista Ricardo Noblat, quando explodiu o escândalo do mensalão, o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, afirmou que Lula tinha conhecimento de tudo. Nesse momento, baixou também o pano sobre o anfitrião do encontro com Gilmar Mendes, o ex-ministro da Justiça e do STF Nelson Jobim, defenestrado do Ministério da presidente Dilma em flagrante de incontinência verbal. Ao ministro Gilmar, alvo direto e denunciante do estranho assédio, restou repelir a investida, recebendo o categórico endosso de seus pares que, ao agendarem o início do julgamento para agosto, tornaram visível o tiro no próprio pé desferido pelos autores do imbróglio.
Mas nem bem assentara a poeira, entra em cena José Dirceu, réu do processo, apontado como "chefe da quadrilha" pelo então procurador-geral da República Antônio Fernando de Souza, que assinou a denúncia encaminhada ao STF contra o grupo de mensaleiros. Dirceu defende a mobilização da sociedade civil, inclusive de estudantes, supostamente em nome da garantia de um julgamento isento para réus que já estariam previamente condenados pela pressão da mídia. Ou seja, na evolução do minueto e fracassada a tentativa de adiar o julgamento, as baterias são assestadas para produzir uma nova e mais séria pressão sobre o STF, demagogicamente convocado a absolver os réus para demonstrar sua independência diante da mídia impressa e eletrônica, das redes sociais e da opinião pública.
Afirmam alguns que o mensalão não existiu, representando apenas uma nova versão do conhecido caixa dois. A denúncia e as alegações finais do Ministério Público, muito ao contrário, sustentam o funcionamento de um articulado esquema de compra de votos no Congresso, por meio do qual o governo obteve maioria para diversas votações de seu interesse. Dirimir a dúvida é a questão fundamental desse importante julgamento, quando o tribunal situado no topo da hierarquia constitucional do Judiciário deverá apontar ao país se, ainda que por algum tempo, ele terá funcionado praticamente sem Poder Legislativo, diante da profundidade da corrupção que a acusação afirma semeada no Congresso Nacional, para favorecimento das propostas do Poder Executivo.
Não é porque nomearam oito ministros que os senhores da política podem ressuscitar o baraço e o cutelo. No Brasil de 2012 não cabem manobras absolutistas de agressão à separação de poderes, seja pela mesada seja pelo constrangimento. Rafael Correa há pouco destituiu a Corte Suprema equatoriana, porque a mesma não atendia aos seus espasmos de poder absoluto. Também Hugo Chávez não hesita em exigir a curvatura da espinha dorsal do Judiciário venezuelano. Por aqui, os sonhadores do poder absoluto - de qualquer coloração partidária - felizmente não têm passado de grotescos arroubos sem conseguir abalar as instituições democráticas.
Diante de tudo isso, a audaciosa tentativa de constrangimento do tribunal deve ser firmemente repudiada, com os juízes afastando a solércia de prejulgamento em qualquer sentido, atendendo à voz da consciência e ao criterioso exame da prova dos autos. Só assim se poderá concluir um julgamento verdadeiramente isento da suspeita de contaminação, fiel aos alicerces constitucionais de um processo penal liberto das amarras de qualquer chantagem, mesmo quando envolvendo detentores de poder político ou econômico.
A democracia e a República agradecem, afirmando-se com toda a energia que o cumprimento da Constituição pelo STF, seu intérprete e guardião final, não se curvará à arrogância dos que, embalados por seu delírio de grandeza, se imaginam acima da lei.
Que venha, então, o julgamento do mensalão pelo STF, certamente com a isenção própria do exercício da jurisdição em contextos democráticos, assim reafirmando, uma vez mais - como recentemente assinalado pela vigência da lei de acesso à informação e pela instalação da Comissão da Verdade -, a plenitude das franquias reveladoras do estado democrático de direito.
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