sábado, junho 16, 2012
O cavaleiro das palavras estranhas - MILTON HATOUM
O Estado de S.Paulo - 16/06
Adonis é uma fábula fenícia que se irradiou na literatura da Grécia antiga com a força e complexidade dos grandes mitos. Nascido de uma árvore, Adonis tornou-se para os gregos um símbolo do mistério da natureza: um deus da vegetação e da fertilidade, ligado ao ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos.
Ainda jovem, ao escolher esse pseudônimo, o poeta sírio Ali Ahmad Said Esber introduziu na região do islã uma dimensão mítica e pagã, que reúne a literatura e o saber de duas culturas do Mediterrâneo. Esse elo cultural terá uma forte repercussão na obra poética e crítica de Adonis.
Um episódio da infância do poeta já faz parte de sua mitologia pessoal: aos 13 anos ele declamou seus poemas ao presidente da Síria, que visitava uma cidade vizinha a Qassabin, a aldeia onde o poeta nasceu em 1930. Por esse gesto de audácia, ganhou uma bolsa para estudar no liceu francês de Tartus, uma cidade portuária no centro-sul do litoral sírio. Em 1954, quando se formou em filosofia na universidade de Damasco, já havia lido a poesia árabe clássica e pré-islâmica, e também poemas de Charles Baudelaire, Rainer Maria Rilke, René Char, Henri Michaux... Dos dois anos do serviço militar, passou 11 meses na prisão, acusado de atividades subversivas.
Em 1956 mudou-se para Beirute, cidade que o acolheu e onde morou por quase 20 anos. Beirute era - talvez ainda seja - a capital árabe mais aberta à cultura do Ocidente e ao debate e confronto de ideias. Em 1960, quando morou um ano em Paris, conheceu vários poetas europeus e latino-americanos: Henri Michaux, Paul Celan, Tristan Tzara, Octavio Paz, Yves Bonnefoix... A convivência com esses poetas e a vida cultural de Paris - onde passou a morar a partir de 1985 - foram importantes não apenas para Adonis, mas também para a revista libanesa Chiir (1957-64), fundada por ele e pelo poeta e crítico Youssef al-Khal. Em 1959, ambos traduziram para o árabe The Waste Land, de T. S. Eliot, e, quatro anos depois, uma antologia da obra de Robert Frost.
Por certo já existiam outras revistas culturais relevantes em Beirute - como a Al-Adab -, em Bagdá e no Cairo, onde o "movimento do verso livre", liderado pelo poeta iraquiano Abd al-Wahab al-Bayati, se consolidara entre 1947 e 1954, com repercussões na produção literária na Síria, Palestina e Egito. Mas foi a Chiir a que mais se empenhou em estreitar os laços culturais com o Ocidente, tendo publicado manifestos poéticos, entrevistas com T. S. Eliot e outros poetas, e traduções para o árabe das obras de poetas europeus e norte-americanos.
Em 1968, Adonis fundou a revista Mawáqif, cujo objetivo principal era dar voz a jovens poetas, principalmente os que sugeriam formas inovadoras na poesia árabe. Num artigo sobre a história da Mawáqif e sua irradiação na cultura árabe contemporânea, Khalida Said ressalta que a revista "extrapolou questões literárias e abordou temas que até então eram tabus, sobretudo ligados ao nacionalismo e à identidade, à inspiração divina, ao texto religioso, à situação da mulher, da universidade, da educação, às relações entre o Ocidente e o Oriente, à violência, à criação artística e à 'nova escrita'. Assim, operava uma revisão da questão da modernidade e de seus conceitos na poesia e na arte, ou ainda na crítica e no pensamento histórico, filosófico, religioso, social e político".
Ao reivindicar uma mudança na vida intelectual e no fazer artístico, Adonis enfatizava que essa mudança devia ultrapassar o quadro político e nacionalista "para englobar uma dimensão mais profunda e mais vasta: a do homem em sua verdadeira essência". Com isso, ele trouxe para sua poesia um novo espírito, que respondia à mudança por meio de uma compreensão da tradição literária em nome da diversidade. Para ele, tanto a modernidade quanto a renovação da tradição fazem parte de um processo inacabado, contínuo, e relacionam-se de um modo dialético, que transcende ou supera valores e formas rígidos.
Para o Adonis autor de estudos de poética e de antologias da poesia árabe de todos os tempos, o classicismo não é um bloco engessado. Nos poetas e críticos antigos ele encontra saturação, questionamento, rompimento e inovação. Nessa constatação, que aproxima o legado árabe da modernidade ocidental, por exemplo, não cabe nenhuma comparação ou juízo de valor entre os campos da cultura, mas talvez seja um modo de dizer que essa poesia do passado, com traços modernos, precisava de uma nova leitura interpretativa, à luz da contemporaneidade, capaz de confrontar a lírica clássica com a de outras épocas e culturas, e, assim, de tentar elaborar uma poética própria.
Assimilando vozes do Ocidente, como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Nerval e Breton, e do Oriente, como Abu-Nuwas, Abu-Tammam e al-Jurjani, Adonis encontrou um modo próprio e inovador para expressar seu lirismo. Sua experiência individual, e também histórica, está disseminada na vasta obra poética, que opera com uma enorme variedade de temas, misturas de estilos e alternâncias de tons do narrador lírico. Uma parte significativa dessa diversidade temática e formal se encontra na tradução notável do poeta e professor Michel Sleiman.
Das formas breves da lírica aos poemas com versos longos, de corte épico, o leitor se vê diante de uma poesia estranha, que evoca ao mesmo tempo a origem da própria poesia e o que nela há de mais moderno. A elaboração formal dos poemas mais longos lembra, às vezes, a técnica da colagem, usada por poetas e artistas das vanguardas europeias. Adonis também tem usado esse recurso técnico em seus trabalhos artísticos, juntando cacos e fragmentos de pequenos objetos encontrados ao acaso e colando-os sobre textos escritos em árabe, formando uma imagem cujo efeito visual surpreende pela junção de materiais tão distintos: a arte milenar da caligrafia com pedaços de objetos inúteis.
A publicação do livro Cantos de Mihyar, o Damasceno (1961) foi um verdadeiro acontecimento literário, e não demorou a ser traduzido em várias línguas e analisado por críticos árabes e ocidentais. Nesse poema "cantado" por várias vozes, ou por outras vozes de um narrador lírico cambiante, o protagonista passa por sucessivas metamorfoses e adquire múltiplas identidades. A abertura desse excerto dos Cantos de Mihyar é um salmo em prosa ritmada, que anuncia a chegada do "cavaleiro das palavras estranhas", cuja pátria é uma nebulosa e cujas palavras, com seu poder transformador, rumam à perdição: Ele é o vento que não volta atrás, a água que não retorna à fonte. Cria sua espécie a partir dele mesmo.
Adonis recorre ao antigo tópico da viagem como fonte de metamorfoses, da perambulação, da transgressão, do excesso. Sem regressar ao porto de origem, Mihyar é um rei que vive "no reino do vento e reina na terra dos segredos", um rei cujo "sonho é palácio e jardins de fogo", um ser cujos olhos nascem em busca do mito "num mundo que veste o rosto da morte".
Na viagem de um ser desgarrado e errante, o tempo se esfuma numa espécie de fulgor, e o espaço se expande até o "fim do céu". O cavaleiro que "faz errar o desespero" percorre sem esperança o caminho da utopia, anunciando a morte dos deuses e sua própria morte. Cavaleiro de uma travessia ininterrupta, Mihyar é um "bárbaro santo que estende as palmas das mãos para a pátria morta e para as ruas mudas, que avança na estação das novas letras e entrega-se em poesia aos ventos". No poema Exortação da Morte, um coro de vozes dramatiza a fúria de Mihyar, que "queima nossa casca de vida/ nossa resignação, nosso jeito amável". Mais adiante, outra voz exorta para que ele seja crucificado: Ó cidade dos exilados, receba-o/ com espinhos, receba-o com pedras/ pendure suas mãos como um arco/ onde um funeral passe embaixo/ coroe suas têmporas/ com brasa e tatuagem, e que abrase Mihyar.
II
O exílio de Adonis em Beirute, a intuição de que em 1971 o Líbano estava à beira de uma guerra civil, os crimes cometidos pelo exército norte-americano no Vietnã, a consciência crítica da vergonhosa submissão de monarquias despóticas e ditaduras árabes aos interesses de poderosas nações ocidentais, tudo isso está insinuado no poema Tumba para Nova York, em que o lírico e o épico se misturam para evocar um capítulo infernal da história contemporânea, com alusões a outras épocas e culturas, onde líderes políticos, estadistas e poetas aparecem como personagens dotadas de simbologia e relevo histórico.
Para alguns críticos, esse poema marca uma "clara inflexão na poética de Adonis, que dá, pela primeira vez em sua obra, um sentido histórico imediato à escrita". Os leitores brasileiros talvez se lembrem de alguns versos do poema Inferno em Wall Street, de Sousândrade. Ou dos versos do poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade: "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan". De algum modo, ambos criticam a capital mundial das finanças, que, no nosso tempo, é também o centro da cultura do Ocidente. Nesse diálogo sofisticado e alucinado com a metrópole vital e polimorfa, a visão crítica de Adonis é visceral, sem ser maniqueísta. A democracia do país de Walt Whitman e Abraham Lincoln se opõe aos crimes de Richard Nixon, do secretário de Defesa Robert McNamara e de Calley, um militar de baixa patente que chefiou a matança na aldeia de My Lai. A Quinta Avenida e o poder econômico de Wall Street contrapõem-se ao Harlem e ao Greenwich Village, bairros que indicam um futuro mais otimista.
Em várias passagens do poema, os versos longos adquirem o ritmo da prosa e lembram os versículos usados por Walt Whitman, evocado no capítulo IX do poema, em que o narrador se dirige ao grande poeta norte-americano e cita vários versos de Leaves of Grass. O poema de Adonis também dialoga com o Poeta en Nueva York, na medida em que recupera, em outro contexto histórico-político, determinadas reminiscências das imagens de Federico García Lorca.
III
Desde o começo, a linguagem poética de Adonis sonda os segredos das coisas e dos seres; ou, como diz Bandeira em seu Gazal, "o mistério do mundo", que resiste à plena decifração. A certa altura de Nos Braços de Outro Alfabeto, poema longo sobre Damasco, uma voz aconselha: "Diz a teu corpo, amigo do mistério: não poderás transformar as palavras em coisas." E ainda nesse poema, um provérbio que parece vir da voz de um poeta sufi diz: "Não vás até a porta pelo que ela é em si, mas pelo que nela é oculto."
Nessa Damasco fantasmagórica, em que o passado e o presente, imbricados, são evocados por um coro de vozes, há várias referências concretas à cidade e à vida de seus moradores, às palavras escutadas nas ruas, praças, banhos, escolas, cafés e mercados. Uma dessas vozes diz: "Mal te refugias na realidade, vês em seu rosto uma miragem que beija a terra." Nesse verso belíssimo a realidade, transformada em quimera pelo olhar, é o outro refúgio possível: lugar em que a miragem se une à terra por meio de um gesto do desejo.
IV
"Se sou nativo do Oriente", escreveu Adonis, "é porque, antes de mais nada, invento meu próprio Oriente Para mim, o Oriente é o indefinível, a extensão vazia, o nomadismo original." Nessa travessia sem fim, a palavra poética "parece obedecer à vontade, mais utópica que qualquer outra, de fazer dialogar todos os tempos e todos os lugares possíveis no espaço terrestre". Os mitos - e as narrativas que lhes dão significado simbólico e histórico - movem essa viagem da imaginação, às vezes alucinada e delirante a caminho do êxtase. Talvez seja esta a única forma de o cavaleiro das palavras estranhas se acercar do desconhecido, da "essência do impossível", do enigma da vida.
O vinho que corre na veia da melhor poesia árabe também circula nos poemas de Adonis. O vinho como metáfora da grande poesia: assombro, prazer, embriaguez do conhecimento, e uma percepção expansiva da realidade e do eu lírico, capaz de expressar um sentido aguçado de beleza e alcançar o sublime.
"Se sou nativo do Oriente, é porque, antes de mais nada, invento meu próprio Oriente", diz ele
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