sábado, junho 02, 2012

O afeto ou a bolsa - MIGUEL REALE JUNIOR


O Estado de S.Paulo - 02/06



Haveria da parte dos filhos em relação aos pais, do marido em relação à mulher, da mãe em relação à filha o direito de requerer judicialmente que lhe seja dedicado afeto? Haveria a possibilidade de alguém pretender o bem-querer de outrem como dever jurídico por ser seu filho, marido ou mãe? Como impor a alguém ser afetuoso em razão de laço de sangue ou de liame matrimonial? Por não se ter sido afetuoso, pode-se transformar essa falta de afeto em dinheiro, por descumprimento do dever de agir afetuosamente?

Essa questão vem sendo erroneamente apreciada pelos tribunais, culminando com recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na qual se confundem integralmente direito e moral. Dentre os vários exemplos, há duas decisões conflitantes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Segundo o entendimento da 7.ª Câmara Cível, caberia ao pai pagar indenização, embora prestasse regularmente alimentos, "em face da dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico". Mas, em decisão oposta, a 12.ª Câmara Cível, com razão, considerou indevida a indenização por danos morais em vista da ausência da figura paterna: "Ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor", pois "a paternidade requer envolvimento afetivo e se constrói com o passar do tempo, através de amor, dedicação, atenção, respeito, carinho, zelo, etc, ou seja, envolve uma série de sentimentos e atitudes que não podem ser impostos a alguém e muito menos serem quantificados e aferidos como dano indenizável".

No STJ decidiu-se que caberia ao pai pagar à filha indenização, pois houve ausência quase completa de contato paterno com a reclamante, em descompasso com o tratamento dispensado a outros herdeiros. Hoje casada e professora, a filha declarou a este jornal: "Desde que nasci ele nunca me quis". Revelou, também, que em toda a sua vida sentiu falta de ter um pai: "Uma pessoa para me aconselhar, para conversar, para me ajudar no que eu precisasse, eu nunca tive. Eu me encontrei com meu pai algumas vezes, tanto que ele pagou a pensão porque foi obrigado, mas em nenhuma das vezes ele me deu atenção".

Para a ministra Nancy Andrighi, há deveres de convívio, cuidado, educação, transmissão de atenção, acompanhamento do desenvolvimento sociopsicológico dos filhos: "Amar é faculdade, cuidar é dever". A seu ver, além do estabelecido na lei, "os pais devem garantir aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para adequada formação psicológica e inserção social".

No caso, a filha conseguira a "inserção social", mas a ministra entendeu, conforme noticiou o Estado (2/5), não se poder negar ter havido "sofrimento, mágoa e tristeza", que persistem como decorrência das omissões de cuidado do pai, daí derivando dever de indenizar. No seu entender, há, para além da lei, deveres de transmissão de atenção e de afetividade. Estes, portanto, não defluem da lei, mas de juízo moral do julgador, comovido com o sofrimento da filha, quando é certo não ser eventual dor, de difícil constatação, que legitima indenização, mas sim a violação a bem jurídico essencial, garantido pelo direito. A conduta do pai desatencioso com o filho, apesar de cumpridor dos deveres alimentares, pode ser moralmente censurável, mas não ilícita.

Ora, se o dever não decorre da lei, mas de juízo moral, inexiste pretensão juridicamente assegurada, pois não há direito subjetivo ao afeto, transformando-se o amor em dever jurídico. Se era incabível requerer judicialmente, quando criança, que o pai lhe dedicasse afeto, como depois transformar a ausência desse afeto em indenização monetária? Mistura-se o moralmente reprovável com o juridicamente exigível, quando apenas cabe indenização por descumprimento de dever jurídico. Pode ser censurável não ter afeto pelo filho, mas tal não constitui falta de cuidado legalmente estatuído e a lei jamais poderia impor a efetividade de carinho paterno.

A frase de efeito, repetida na imprensa, "amar é uma faculdade, cuidar é dever" incide em equívocos, pois faculdade consiste na possibilidade de exercício de um direito. Amar não é uma faculdade, é sentimento espontâneo de bem-querer que não deriva da lei.

Cuidar de criança ou adolescente é um dever, mas dentro de quais limites legais? O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que cumpre aos pais prover alimentos: nutrição, saúde, habitação e educação. No Código Penal estatui-se ser crime o abandono material e intelectual consistente em deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do filho ou sua instrução. No campo do direito não se confunde cuidado com cuidar afetivamente.

Dar afeto ou cuidar afetivamente - ser conselheiro, amigo, garantir equilíbrio emocional e inserção social - não constitui um dever jurídico, a não ser que se queira instituir a hipocrisia por força de lei. Muitas são as circunstâncias que a vida apresenta quanto aos afetos, a começar pela espontânea afinidade surgida sem se saber por quê. Pretender colocar o Estado a ditar o sentimento do afeto é um autoritarismo paternalista inaceitável. Com clareza assinalou a jornalista Eliane Brum não caber a nenhum tribunal analisar "sentimentos" e desferir punições pela ausência ou excesso de "sentimentos".

A decisão é preocupante exemplo de mercantilização das relações afetivas, com o risco de incompatibilidades naturais gerarem mágoa e, depois, a ação indenizatória como represália. Grave é o Estado assumir o papel de grande tutor, para suprir o desamor, impondo compensação em dinheiro, que algumas vezes pode apenas ter gosto de vingança. No STJ acaba-se, sem se aperceber, por consagrar o dever de cuidar amorosamente, substituindo-o pelo dever de indenizar monetariamente.

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