domingo, junho 24, 2012

Em fuga - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 24/06


"Um feroz bestiário que incluía lobos, macacos e 18 tigres de Bengala... tinha escapado das jaulas numa reserva particular de 30 hectares... No fim da quarta-feira, um dia após o início da caçada, as autoridades desta cidade de 25 mil habitantes na região central de Ohio disseram ter morto ou capturado todos os animais, com uma única exceção: um macaco. O símio não fora visto durante todo o dia, e representantes do governo acreditavam que ele poderia ter sido morto por um dos outros animais..." - The New York Times, 19 de outubro de 2011

"Durante uma coletiva de imprensa realizada à tarde, o xerife disse que o perigo tinha passado e que as pessoas poderiam voltar a se locomover livremente, mas que o macaco seria provavelmente abatido, pois acreditava-se que seria portador de herpes." - CBS News, mesma data

Eles nos tratam a vida toda como se não fôssemos nada, nos alimentam com carne velha e bananas podres, deixam turistas desmiolados fazerem "caras de macaco" para nós - se eu realmente tivesse um parente com uma cara daquelas, faria um favor a todos e me mataria - e, então, como insulto final, nos acusam de ter herpes. Tive um grande amor na vida, uma macaquinha dourada chamada Lily e podem acreditar quando digo que ela era uma primata limpíssima.

É isso que eles fazem quando não gostam da gente. Atacam nossa reputação. Na natureza, quando não gostamos de alguém, arrancamos logo as suas tripas. Simples. E, se formos analisar os fatos, é até civilizado. Nada de mentiras. Nada de falatório inócuo. Nada de confusão mental prolongada nem angústia. Zip. Tudo acaba num instante. Já os humanos precisam nos rebaixar antes de nos matar. Mesmo quando as pessoas fazem algo ruim, elas precisam se sentir bem a respeito de si mesmas.

Bom, saibam que não tenho herpes nem fui morto por um de meus colegas. Fizemos um acordo: depois de fugir é cada animal por si. Não é preciso ajudar ninguém, mas não é preciso devorar ninguém, certo? Há latas de lixo de sobra, todas transbordando de alimento. O bastante para a turma toda. Não posso dizer que não tenha ficado um pouco desconfiado quando um dos lobos se ofereceu para me dar uma carona em suas costas, mas respondi, "Não, obrigado", e fim de papo - embora eu tenha me mantido nas copas das árvores durante algum tempo depois desta conversa. O melhor de ser um animal é o fato de reconhecermos um lobo quando vemos um deles.

Escondi-me num beco em Cincinnati, rumei para o Sul, depois para Nova York, e então desci pela Costa Leste. Não dava para ficar muito tempo em Nova York. Os esquilos estavam cobrando 200 nozes por mês por um galho simples no Central Park. Não queriam aceitar nem mesmo os bons e velhos amendoins. Nozes ou nada. Paguei dez castanhas por noite para passar uma semana num simpático arbusto no Bronx, e depois me mandei de lá. Era tudo competitivo demais. Impossível arrumar um lugar no lixão do bairro sem fazer reservas.

No começo, fiquei aterrorizado por ser um fugitivo. Tremia tanto que mal conseguia me locomover. Certa tarde, estava correndo pela calçada de um subúrbio de St. Louis quando me deparei com um adolescente. Imagine a cena: um macaco-aranha de quase um metro de altura usando as roupas que pude encontrar (bermudas, uma imensa camiseta dos Detroit Lions, um boné com a frase "Amando Las Vegas" ocultando o rosto e sapatilhas de balé douradas). Dei de cara com o rapaz e pensei que estava tudo acabado para mim. Mas ele estava tão concentrado no retângulo luminoso que trazia nas mãos a ponto de olhar para mim, dizer "com licença" e continuar caminhando. A partir de então, sempre que via um adolescente americano, eu temia pelo futuro do país, mas não pelo meu destino.

Resolvi o problema do vestuário com relativa rapidez (por mais difícil que tenha sido me separar da camiseta dos Detroit Lions). Encontrei um mercado de pulgas em Jersey City e arrumei um terno bacana de três peças, modelito completo. Listras azuis. Depois disso, a vida de fugitivo se tornou muito diferente do que eu havia imaginado. Certa noite, enquanto me deliciava com uns canapés de abacaxi que repousavam sobre a mesa num quintal dos subúrbios de Nova York, algumas pessoas chegaram subitamente para começar uma festa. Não tive escolha a não ser me passar por um dos convidados. Não demorei para descobrir como deveria me comportar. Quando o tema da conversa era a política, eu rangia os dentes. Quando era a cultura, eu sorria, amistoso. Quando falávamos de outro convidado da festa, eu assentia com a cabeça. Ninguém pareceu reparar que um dos convidados da festa era um macaco até o momento em que alguém me perguntou onde eu morava e, desavisadamente, apontei na direção de uma parte menos rica da cidade. Alguém gritou "É um macaco!", e tive de correr para salvar minha pele.

Vou lhes dizer uma coisa: ser fugitivo nos Estados Unidos é uma verdadeira revelação. Fui convidado a me candidatar tanto pelos republicanos quanto pelos democratas; fui chamado a aparecer num anúncio da Nike ("Nike: a escolha do fugitivo"); e fui transformado brevemente no astro de um reality show produzido na região (Mãos e pés descalços). Atualmente, estou escrevendo um livro de memórias e preparando uma coluna semanal para o Washington Post. Tomo um remédio para a depressão, outro para a ansiedade, um para a histeria e dois para manter a raiva sob controle.

Sinto sua falta, Lily.

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