segunda-feira, junho 25, 2012

Coveiros do Leviatã - ROBERTO ROMANO


REVISTA VEJA


Nossos partidos abusam do eleitor ao mercadejar alianças. Longe de conceitos ou doutrinas, pechincham e barateiam adesões. Não existem diferenças entre eles porque, diriam os petistas juvenis, todos são "farinha do mesmo saco", Weber, Marx, Tocqueville, Bobbio e outros tentaram pensar a política. Hoje ela atinge o impensável.
O estado, desde o seu nascimento, sofre – ameaças de morte. Sempre que os dirigentes abusam do poder, os governados se rebelam. Assim ocorre nos levantes democráticos (séculos XVII na Inglaterra e XVIII nos EUA e na França), quando garantias e direitos são arrancados do maquiavelismo absolutista. No século XX, a divindade mortal sente o cheiro da morte. Num espasmo para garantir sobrevida, ela passa ao totalitarismo, se alimenta dos corpos trucidados na Alemanha, na URSS, no mundo. Com a Guerra Fria, o seu poder atinge o ápice. Nas batalhas pelo controle internacional, o Leviatã extenua as fontes econômicas, culturais, jurídicas, religiosas. Os partidos assumem ideologias para conservar diferentes formas de poder. Comunismo ou republicanismo entram na paleta dos ideários, que reúne cores mistas como o gaullismo na França e o trabalhismo inglês. Existiram formas ideológicas porque o estado ainda administrava a sua crise mortal.
Com o fim da URSS, desaparece a bipolaridade planetária, perdem força os poderes estatais. Crises financeiras, desindustrialização, choques desastrosos no comércio externo, diplomacia sem arte, sociedades à míngua de segurança. A soberania é corroída com maior ou menor efeito. O caso da Europa mostra quanto às lesões podem ser profundas e duradouras. Sem o poder soberano (em campo nacional) ou hegemônico (no internacional), as ideologias perdem sentido.
Como o estado é o terreno da politica, com seu enfraquecimento, somem a causa e a razão de qualquer doutrina. Na crise, o primeiro signo letal é a perda de substância programática nos partidos. Partidos projetam formas de estado e sociedade. Eles oferecem aos eleitores um plano de ordem social e jurídica: liberal, socialista etc. Vencendo as eleições, os dirigentes tentam aplicar o prometido. Se vence o socialismo, dele se espera a preeminência do coletivo sobre os indivíduos. Os vencidos seguem para a legítima oposição. Vitorioso o liberalismo, as políticas seguem outras vias. Na democracia, a derrota ou a vitória nunca expulsam os adversários da cena pública. A alternância do mando prolonga a vida do Leviatã. Caso uma agremiação tenha um programa, mas, para atingir e manter indefinidamente o mando, se alie a setores que pregam o contrário do que ela promete ao eleitor, ocorre o estelionato eleitoral. O programa, depois de escolhido, não pertence mais aos eleitos, mas à maioria que o sufragou. Ao quebrarem a fé pública, os partidos chegam à infâmia e a sua política se limita ao camelódromo dos votos.
Na compra de certo produto, o cliente experimenta suas virtudes ou defeitos. Não se dá o mesmo nas urnas. Como diz um sábio, "o eleitor não conhece antecipadamente o efeito de sua escolha, porque o poder do partido ou candidato ao qual deu o voto depende do maior ou menor número de votos que eles receberam de outros eleitores, sobre os quais ele não exercita isoladamente nenhuma influência". No comércio politico, o poder se conquista com votos. Para adquiri-los e livrar-se das despesas de sua compra, o demagogo "usa o poder conquistado ou adquirido para obter benefícios ( ... ). O poder custa, mas rende. Se custa, deve render. O jogo é arriscado: às vezes, custa mais do que rende, se o candidato não é eleito; mas ele rende mais do que custa" (Norberto Bobbio, "A utopia de cabeça para baixo").
E assim vive a maioria dos partidos. Max Weber diz que a diferença entre a política americana e a europeia reside no fato de que a primeira se caracteriza pela pragmática do mercado eleitoral, sob a batuta de um chefe (o boss) que negocia alianças. Os europeus seriam doutrinários. Descontada a injustiça weberiana para com os americanos, o tipo por ele referido se universaliza na crise de estado. O mercadejo eleitoral tudo vende, tudo troca, tudo compra. O Brasil piora a tendência. Após o regime de força (quando liberais e esquerdistas se uniram para lutar, por meios distintos, contra o arbítrio), a esquerda e os conservadores acentuaram seus ideários e doutrinas. Foi a hora da pureza ética, da guerra pelo monopólio da virtude. Após Sarney e o impedimento de Collor, a social-democracia subiu ao Planalto com FHC. E chegou a vez do socialista Partido dos Trabalhadores. Para garantir a "governabilidade", no entanto, surgem a feira das alianças ("É dando que se recebe"), o mensalão e outros recursos mercadológicos.
Para explicar o vezo dos oligarcas, só Nietzsche: "Eles querem o poder e, antes, muito dinheiro, a alavanca do poder. Todos eles almejam ganhar o trono. Com frequência, é a lama que está sobre o trono, e não raro o trono está plantado na lama" (Zaratustra). Tem razão Nietzsche, basta rever a foto de Lula e Maluf: nela, aparece o lado real da mentira ideológica. Antonio Donato, coordenador da campanha do petista Haddad, explica: "Quem está neste jogo tem de jogar o jogo que existe, e não o do mundo ideal, que não existe". Com defensores desse naipe, o Leviatã será enterrado no Brasil. Diagnóstico da moléstia que o levará à cova? Esclerose mental.

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