quarta-feira, maio 23, 2012

Razão cínica - ZUENIR VENTURA


O Globo - 23/05


Aexpressão do título não é nova, foi lançada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk e divulgada aqui nos anos 80 pelo psicanalista Jurandir Freire Costa. Mas nunca teve tanta aplicação quanto agora, por ocasião da CPI do Cachoeira. Diante das evidências fornecidas pela tecnologia da informação - câmeras ocultas, grampos, gravações telefônicas -, os envolvidos estão reagindo como o adúltero do conselho dado por Nelson Rodrigues: "Negue sempre, mesmo que a amante esteja nua a seu lado na cama." Ou, então, "minta, minta sempre, porque alguma coisa fica", como recomendava Joseph Goebels, ministro da Propaganda nazista. De fato, tanto quanto o volume de dinheiro movimentado nessas tenebrosas transações, impressiona a desfaçatez das desculpas dos que são pegos com a boca na botija.

Nesse quesito, Demóstenes Torres não tem competidor, a não ser o Paulo Maluf negando depósitos milionários em paraísos fiscais. Quando a Polícia Federal informou que gravara 416 conversas íntimas e comprometedoras dele com Carlinhos Cachoeira, a resposta do senador foi: "Podem grampear à vontade, não vão encontrar nada." Até porque, como alegou, nunca manteve negócios com o amigo e nem nunca soube que ele era bicheiro. Quando aumentaram os indícios de seu envolvimento, ele se queixou: "A tudo suporto porque nada fiz para envergonhar meu partido, o Senado, Goiás e o Brasil."

Pode-se alegar que Demóstenes é um caso à parte, quase patológico. Mas há outros exemplos dessa prática, como o do deputado petista Cândido Vaccarezza, flagrado garantindo blindagem ao governador Sérgio Cabral. Num torpedo, ele escreveu para o peemedebista: "A relação com o PMDB vai azedar na CPI. Mas não se preocupe, você é nosso e nós somos teu (sic)." Ao descobrir que tinha sido gravado pelo SBT, foi para o Twitter e desdisse o que disse: "Sou amigo do PMDB e nossas relações nunca serão azedadas." Depois, como um impiedoso pregador moral, prometeu investigar com rigor absoluto todas as questões que cercam a organização criminosa: "Todas, sem exceção, doa a quem doer."

O efeito mais nocivo desse comportamento que mistura mentira, hipocrisia e cinismo é a sua capacidade de contagiar a sociedade. Como já disse Jurandir Costa, é "essa sensação de que nada mais tem valor; de que o valor não existe, que tudo é igual. Ou seja, passa a imperar uma filosofia, que eu chamo de razão cínica, que, no nível político, do dia a dia, diz que, seja eu um mau-caráter, seja eu um homem de bem, é exatamente igual. Ou pior: do ponto de vista do usufruto individual, há até mais vantagens em ser um cafajeste".

Em outras palavras, a razão cínica, aliada à impunidade, reforça a ideia de que o crime de colarinho branco de fato compensa.

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