quarta-feira, maio 16, 2012

Direito de saber - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 16/05/12


"Período medonho, horroroso para o Brasil, uma vergonha. Passou, graças a Deus." Foi como a cantora Maria Bethânia, na entrevista a Chico Pinheiro, na semana passada, definiu o regime militar. Sim, medonho. E é parte desse passado que os integrantes da Comissão da Verdade vão investigar a partir de hoje quando tomarem posse. O equilíbrio da escolha dos nomes, os limites do trabalho da comissão, tudo inspira confiança.

A Comissão da Verdade vai apenas buscar informações, procurar respostas para velhas perguntas, dúvidas que não poderiam ser herdadas pelas próximas gerações. Não se coloca, portanto, a questão sobre a vigência ou não da Lei da Anistia. Ela está em vigor. Não foi, como se diz, fruto de um momento de conciliação do país. Foi, na verdade, o máximo que se conseguiu dentro do regime militar quando ele ainda tinha forças para impor uma interpretação diferente da inicialmente imaginada por quem cunhou o slogan "ampla, geral e irrestrita". Apesar de ser falha e nascida no meio do período autoritário, a Lei da Anistia está sendo respeitada. A Comissão da Verdade tem poderes apenas de apurar as circunstâncias dos desaparecimentos, mortes e torturas ocorridos na ditadura.

O que aconteceu com Vladimir Herzog no pouco tempo em que ficou preso, e como ele foi assassinado, aos 38 anos? Ele, que se apresentou sozinho numa manhã de sábado de 1975 ao local do seu martírio, o II Exército, em São Paulo. O que aconteceu com o deputado Rubens Paiva, que aos 42 anos foi apanhado em sua casa no Rio de Janeiro, diante da família, sem culpa formada, sem acusação? O que aconteceu depois que Paiva entrou em dependências do I Exército, no Rio, em 1971 ? Como foi morto o jovem Stuart Angel, também em 1971, aos 25 anos, nas instalações da Aeronáutica da Base Aérea do Galeão?

As perguntas são inúmeras sobre os mortos e sobre os que simplesmente nunca mais voltaram. E é dever do Estado procurar as respostas, mesmo tanto tempo depois. Estamos passando pela vergonha de não ter respostas diante de tribunais internacionais que reconhecemos como legítimos e dos quais somos integrantes.

A ideia de que não há mais nada a procurar não resistiu à própria criação da Comissão. Assim que foi criada, alguns fatos e testemunhas começaram a aparecer, como os chocantes relatos que estão no livro recém-lançado "Memórias de uma guerra suja", de Cláudio Guerra, em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros.

Mesmo com toda a estranheza que possa ter provocado a versão que ele apresentou, o fato mais relevante é que Cláudio Guerra assume crime de morte. Ele admite que matou, revela as circunstâncias em que os crimes foram praticados, e informa sobre os que estiveram com ele em cada assassinato. Isso é mais forte e relevante do que quaisquer outros detalhes. O livro é matéria-prima para a Comissão.

Outros fatos polêmicos certamente virão à tona enquanto os depoimentos estiverem sendo tomados ou nas sindicâncias que efetuarem. O país demorou muito a fazer esse trabalho de busca e apreensão das informações sobre fatos que fazem parte da História do Brasil e que revelados preencherão também lacunas familiares. Começa, enfim, no dia de hoje essa busca. A maioria dos documentos comprometedores foi destruída, levada por particulares para apagar rastros de seus próprios crimes, escondida pelos sucessivos comandos das Forças Armadas. Mesmo assim, a Comissão da Verdade tem autonomia para agir, para fechar algumas lacunas, para desmontar mentiras que permaneceram até hoje.

Claro que não há uma verdade só, mas esse é o nome que tradicionalmente tem sido dado às comissões que investigam crimes de período autoritário. Claro que toda narrativa histórica está sujeita a revisões e controvérsias. Mas o que a democracia brasileira tem feito até agora, por omissão, é aceitar que se perpetuem versões impostas pelo regime de força, num momento de censura à imprensa e cerceamento das instituições. Isso é uma anomalia. As Forças Armadas não reconhecem que Rubens Paiva estava onde ele morreu, mesmo diante da prova que foi o recibo assinado pelo Exército de entrega à família do carro no qual ele saiu de casa. Não apurar seria aceitar que fiquem como oficiais as versões inventadas pelos militares. Seria matar duas vezes nossos mortos e desaparecidos.

Uma comissão de sete pessoas em apenas dois anos não consegue desfazer tanta mentira institucionalizada, mas apenas ficará registrado que diante de mentiras deslavadas criadas pela ditadura o Brasil disse "não".

O debate sobre se também é preciso investigar os atos da esquerda armada é ocioso. Eles foram punidos de algum modo. Presos, exilados, torturados, condenados por tribunais militares, com defesa cerceada e advogados ameaçados. Alguns nem isso tiveram. Foram apenas executados, ou morreram sob tortura dentro de quartéis ou na tenebrosa Casa da Morte.

Que os integrantes da comissão usem sua maturidade, equilíbrio e experiência - e até a diversidade entre eles - em favor do país. Que não percam o foco de que investigam as circunstâncias da morte e do desaparecimento de brasileiros atingidos pelo terror de Estado. Que não façam isso por desejo de vingança, mas porque essas informações pertencem às famílias das vítimas, em primeiro lugar, e ao país, em segundo lugar. E assim enterrem aquele tempo medonho.

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