domingo, abril 01, 2012

O legislador e o fora da lei - REVISTA ÉPOCA

REVISTA ÉPOCA


Novos documentos e escutas mostram a intensa troca de favores entre o senador Demóstenes Torres e o bicheiro Carlinhos Cachoeira – da saúde pública às licitações da Copa

MARCELO ROCHA, MURILO RAMOS E ANDREI MEIRELES


Qual é o papel de um líder? Conseguir que outros o sigam. Inspirar seus subordinados por meio de suas próprias ações. Servir de exemplo para as futuras conquistas de um corpo coletivo. O senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás, liderava seu partido no Senado Federal. Suas palavras e atitudes, apoiadas num passado de credibilidade no mundo jurídico e como secretário da Segurança Pública de seu Estado, eram respeitadas na cena política nacional. Não mais. Documentos e escutas telefônicas revelados nas últimas semanas mostram que, em vez de representar seus mais de 2 milhões de eleitores, Demóstenes se concentrou em defender os interesses de um único cidadão brasileiro: o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Demóstenes fez lobby para Cachoeira no Congresso Nacional, na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e na Infraero, empresa responsável pela infraestrutura dos aeroportos do país. Uma transcrição obtida com exclusividade por ÉPOCA mostra que Demóstenes também pedia favores a Cachoeira. Ele queria que o bicheiro, influente no Centro-Oeste, ajudasse a agência de publicidade de um amigo a conseguir contratos em Mato Grosso para a Copa do Mundo (leia o documento acima). Acumulam-se as evidências de uma relação promíscua entre um legislador e um fora da lei.

Investigações da Polícia Federal mostram que essa relação incluía inúmeras conversas amistosas, acompanhadas de troca de favores. Um desses bate-papos ocorreu num final de tarde, exatamente às 16h38, do dia 11 de abril de 2011. Os dois conversaram sobre negócios ao telefone. Demóstenes pediu ajuda a Cachoeira para vencer uma licitação em Mato Grosso. Estava em disputa a prestação de serviços de marketing relacionados à Copa do Mundo de 2014. Demóstenes diz a Cachoeira que um “amigo nosso”, dono de agência de publicidade, está interessado. “Cê acha que consegue?”, pergunta Demóstenes. “Acho um negócio bacana. Se for do interesse seu... (de Demóstenes)”, responde Cachoeira. “Eu acho que consigo.” Quatro minutos depois, os dois voltam a se falar, e Demóstenes afirma que passará na casa de Cachoeira para conversar mais sobre o assunto. A ocasião realmente merecia uma discussão mais profunda: estavam em jogo dois lotes, de R$ 13 milhões cada um. Mais tarde, Cachoeira tratou do mesmo assunto com Cláudio Abreu, representante da empresa Delta Construções no Centro-Oeste. “Pega uma (um dos lotes) pra nós”, diz Cachoeira. Em milhares de páginas, o inquérito da Operação Monte Carlo expõe em detalhes como Demóstenes Torres conciliou – e muitas vezes misturou – sua função de senador da República com a de prestador de serviços e parceiro privado de Cachoeira. Tais serviços incluíam lobby, tráfico de influência e corrupção.

Demóstenes defendeu, por exemplo, os interesses da Vitapan Indústria Farmacêutica, laboratório de Carlinhos Cachoeira. Era uma vida dupla. Em público, Demóstenes cobrava rigor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nas licenças concedidas na área de medicamentos. Pelo caminho legal, um laboratório desenvolve um medicamento, submete o trabalho à Anvisa e pede autorização para fabricá-lo. ÉPOCA teve acesso a documentos internos e atas de reunião da Anvisa, a registros e planilhas da Vitapan e à troca de correspondência entre o gabinete de Demóstenes, o laboratório e a agência reguladora. Esses papéis mostram que, nos bastidores, Demóstenes mudava de lado. Ele usava seu prestígio de senador e a estrutura do Senado para pressionar a Anvisa a atender os pleitos de Cachoeira. Entre eles, apressar o registro de uma dúzia de medicamentos.

Um caso exemplar da miscelânea entre público e privado foi o processo de registro de um medicamento similar ao Algy-Flanderil, um anti-inflamatório indicado para o tratamento de reumatismo. Depois de ingressar, em maio de 2009, com o pedido na Anvisa, o laboratório de Cachoeira terceirizou o acompanhamento do processo. De acordo com os registros da Vitapan, cada passo era informado aos interessados pela assessoria parlamentar da Anvisa. Tudo como se fosse apenas um mero pleito político – e não a liberação de um medicamento. Um balanço dessas tratativas foi apresentado pela Vitapan a Demóstenes em 9 de fevereiro de 2011. Ali consta que o registro do anti-inflamatório e de outros 11 remédios continuava a enfrentar resistências técnicas dentro da Anvisa.

Demóstenes decidiu, então, cuidar pessoalmente do caso. Pediu uma audiência com o presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, marcada para o dia 22 de fevereiro. O propósito da reunião apareceu na agenda pública de Barbano: “Processos da empresa Vitapan”. Demóstenes não gostou dessa exposição no site da Anvisa. Queria manter suas atividades como lobista em segredo. Segundo a Anvisa, Demóstenes não compareceu à reunião agendada. Em setembro, Demóstenes usou um artifício para esconder a defesa dos interesses de Cachoeira. Pediu uma nova audiência com Barbano para tratar de um “protocolo de câncer da próstata”. Foi o que ficou registrado na agenda da agência. Na verdade, Demóstentes foi à sede da Anvisa acompanhado da diretora executiva da Vitapan, Silvia Salermo. Um documento interno da agência revelou o verdadeiro motivo da reunião: “3 processos da empresa Vitapan Indústria Farmacêutica Ltda. 1º 23351.004/99/2009-11 – 2º 25352. 75493/2011/98 – 3º 25351. 004199/20009-11 ”. A Anvisa diz que sua presidência não recebe representantes de laboratórios. Pelas normas internas, eles são atendidos apenas por técnicos, e as conversas são gravadas. Não é o que acontece no mundo das pressões movidas por interesses comerciais. Como no caso de Demóstenes, diretores de laboratórios burlam as regras da Anvisa e acompanham parlamentares em audiências com a presidência da agência. No caso de a assessoria parlamentar da Anvisa ter sido usada para informar o laboratório sobre o andamento de seus pleitos, a agência disse que por uma deferência diplomática respondeu aos pedidos de informação do gabinete do senador. De acordo com a Anvisa, isso não interferiu nas decisões técnicas – apesar dos esforços de Demóstenes Torres, os pedidos da Vitapan continuam pendentes.

Em meio às discussões entre Vitapan e Anvisa, Demóstenes criou dificuldades para a recondução do diretor da Anvisa José Agenor Álvares. Demóstenes afirmou a Álvares que haveria problemas para confirmar sua sabatina, etapa necessária para a aprovação de seu nome no Congresso, porque empresários do polo de Anápolis – entre eles, Cachoeira e sua Vitapan – estavam descontentes com o tratamento que Álvares lhes dispensara. Demóstenes, então, sugeriu que Álvares marcasse uma reunião para atender os empresários insatisfeitos. Diante do aceno positivo de Álvares para a reunião, a agressividade de Demóstenes se dissipou. O encontro não ocorreu, mas a defesa da turma de Cachoeira por Demóstenes ficou exposta.

Conhecidas suas relações com o bicheiro, Demóstenes tentou minimizá-las. Disse que apenas conversava “trivialidades” com Cachoeira. Admitiu ter ganhado do contraventor, como presente de casamento, fogão e geladeira importados. Sua situação se complicou quando epoca.com.br revelou que ele recebera um aparelho de rádio Nextel, habilitado nos Estados Unidos, exclusivamente para conversar com Cachoeira.

CONEXÕES PROMÍSCUAS
A partir daí, o altivo senador da oposição esmoreceu. As conexões promíscuas de Demóstenes e Cachoeira foram escancaradas pela imprensa. Entre elas o pedido de Demóstenes para que Cachoeira arcasse com R$ 3 mil do uso de um serviço de táxi-aéreo. Em conversas com seu contador, Geovani Silva, e com Cláudio Abreu, representante da Delta e apontado pela polícia como seu sócio em uma empresa, Cachoeira fala sobre “1 milhão” (de reais) para Demóstenes. O trecho da fita foi mostrado pelo Jornal Nacional. Em outra conversa, Demóstenes promete trabalhar pela aprovação de um projeto de lei que regularizaria o bingo – fundamental para os negócios de Cachoeira. Demóstenes interferiu no andamento de processos de interesse de Cachoeira na Justiça. Prospectou contratos públicos para empresas ligadas a Cachoeira, conforme o jornal O Globo noticiou na sexta-feira passada. Procurou até um ex-presidente da Infraero, estatal que administra os aeroportos do país, para saber sobre processos de licitação.


No ano passado, o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda disse que Demóstenes lhe pedira que contratasse uma empresa de cobrança de pagamentos atrasados. Dias antes de ÉPOCA publicar a entrevista de Arruda, Cachoeira pediu ao sargento da Aeronáutica Idalberto Matias, conhecido como Dadá – apontado pela Polícia Federal como um dos integrantes da quadrilha do bicheiro –, que tentasse saber o que Arruda dissera a seu respeito. Cachoeira estava preocupado com a Delta Construções, que mantém contrato de coleta de lixo com o governo do Distrito Federal. A Polícia Federal suspeita que o contrato tenha sido um meio de o então governador do DEM passar dinheiro a Demóstenes. Entre 2007 e 2010, a Delta recebeu R$ 65 milhões pelo serviço. Arruda perdeu o cargo e foi expulso do DEM após a revelação da existência de uma rede de corrupção no Distrito Federal. No episódio, Demóstenes defendeu a expulsão de Arruda do DEM.

As relações entre Delta e Cachoeira são investigadas pela polícia. No ano passado, Demóstenes defendeu uma investigação – e até uma CPI – que atingiria a Delta. Cachoeira criticou Demóstenes pelo tom das críticas. Nas escutas da Polícia Federal, há um diálogo em que Cachoeira pede a Demóstenes para não ser rigoroso com a Delta, principal fornecedora do governo federal e destaque no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De acordo com a polícia, a Delta abastecia empresas ligadas a assessores de Cachoeira. A Polícia Federal afirma haver “indícios de que parte dos recursos da empresa Delta transferidos para empresas ‘fantasmas’ são destinados (sic) a pessoas físicas e jurídicas vinculadas direta ou indiretamente à estrutura do jogo de azar”.

A PF conclui que, por intermédio de Cláudio Abreu, a Delta atuou no financiamento do esquema de Cachoeira. Segundo a polícia, Cachoeira era sócio de Abreu, representante da Delta, e dava dicas de negócios à construtora. A Delta nega e afirma não ter nenhuma ligação com a organização criminosa. Diz que o Ministério Público Federal ofereceu a denúncia relativa à Operação Monte Carlo e que a empresa não está entre os denunciados. A Delta afirma, ainda, que empresas apontadas pela PF na investigação como “fantasmas” são suas fornecedoras e que contratos foram firmados com elas. A Delta diz que Abreu foi desligado da empresa no dia 8 de março para cuidar de sua defesa, em razão de seu “relacionamento pessoal” com Cachoeira.

VINHOS, PLÁSTICA E MÚSICA
Carlinhos Cachoeira tornou-se conhecido em todo o Brasil em 2004. Na ocasião, ÉPOCA revelou uma gravação em que ele negociava com Waldomiro Diniz, assessor do então ministro José Dirceu, contribuições financeiras para o caixa dois de campanhas petistas e pagamento de propina. Além de Demóstenes, Cachoeira tem prestígio com outros políticos influentes. Um deles é o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB). No ano passado, Cachoeira foi recebido por Perillo no Palácio das Esmeraldas. O bicheiro pediu incentivos fiscais para a sua Vitapan, o mesmo laboratório defendido por Demóstenes na Anvisa. O pedido foi encaminhado por Perillo à Secretaria de Indústria e Comércio. Perillo afirma que recebeu Cachoeira em audiência para tratar de assuntos relacionados a investimentos e à geração de empregos no Estado. Tal proximidade não é nova. Em 2005, em sua outra encarnação como chefe do Executivo goiano, Perillo também prestou auxílio ao grupo de pessoas em torno de Cachoeira. Declarou a Fundar, uma ONG ligada à ex-mulher do bicheiro, Andrea Souza, como de utilidade pública. Dessa forma, a Fundar passou a estar habilitada a receber recursos públicos.

Cachoeira também conversava com Eliane Pinheiro, assessora do governador Perillo. De acordo com as investigações, Cachoeira passou a ela informações que obtivera com seus contatos na Polícia Federal. Eliane fez bom uso do que ouviu: avisou Geraldo Messias, prefeito de Águas Lindas, Goiás, de que a polícia faria uma operação de busca e apreensão em sua casa. Avisado, Messias sumiu. Apesar do rastreamento das ligações telefônicas entre sua assessora e Cachoeira e do conteúdo das conversas, Perillo não afastou Eliane do cargo. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, Perillo afirmou que sua determinação ao secretário de Segurança foi ser “rigoroso na repressão ao crime organizado”.

O senador Demóstenes Torres é um apreciador refinado de música – especialmente MPB e jazz –, orgulhoso de sua coleção de discos de vinil e organizador de saraus. O sisudo Demóstenes também organizava karaokês para parlamentares em sua casa. Chegou à política depois de ser promotor e procurador-geral de Goiás. Em 1999, foi nomeado secretário de Segurança Pública pelo governador Perillo, então em seu primeiro mandato. “A ordem do governador é eliminar a contravenção”, afirmou Demóstenes na ocasião. Demóstenes mostrava-se durão. O comportamento paradoxal revelado agora só não surpreende seus velhos amigos.

Eles contam que, quando secretário, Demóstenes conciliava condutas opostas. Depois do expediente, saía para tomar uísque com amigos em botecos badalados de Goiânia. Segundo esses amigos, às vezes, depois de algumas doses a mais, Demóstenes determinava à Polícia Militar que fechasse as ruas de algum quarteirão próximo a sua casa. Queria aproveitar o espaço livre para dar cavalos de pau com seu carro – assim ao menos minimizava o risco para pedestres e outros motoristas. Depois de se eleger senador em 2002, Demóstenes mudou gradativamente seus hábitos. Passou a se preocupar com a aparência, submeteu-se a uma cirurgia para emagrecer e tornou-se apreciador de vinhos finos e caros. É considerado um dos maiores conhecedores de vinhos do Congresso Nacional e dono de uma vasta adega. Em julho do ano passado, casou-se com a advogada Claudia Gonçalves Coelho. Como epoca.com.br revelou, entre os presentes de casamento do casal estavam um fogão e uma geladeira importados – do amigo Carlinhos Cachoeira.

MARAJÁS E VASSOURINHA
Demóstenes fez carreira no Congresso com projetos para endurecer leis de combate ao crime e com a bandeira da defesa da ética na política. Aproveitou-se de um tradicional nicho moralista, propiciado pela secular presença da corrupção e da roubalheira na política brasileira. Em 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente da República tendo uma vassoura como símbolo. O jingle da propaganda dizia Varre, varre, vassourinha!/Varre, varre a bandalheira!. Jânio logo desistiu de colocar em prática seu lema e varreu a si mesmo do Planalto, meros sete meses depois. Em 1989, o candidato Fernando Collor de Mello chegou à Presidência, entre outras coisas, graças à imagem de “caçador de marajás” estabelecida como governador de Alagoas. Eleito, Collor também acabou renunciando diante de um processo de impeachment no Legislativo, desencadeado pela atuação corrupta de uma quadrilha formada por seus mais próximos assessores.

O discurso de Demóstenes durou mais: ele conseguiu sustentá-lo por nove anos. Não perdeu nenhuma chance de ser implacável com colegas acusados de corrupção. Foi assim com Renan Calheiros, acusado de usufruir ajuda financeira de uma empreiteira para bancar uma amante. Fez o mesmo com José Sarney, acusado de recorrer a atos secretos para nomear parentes no Senado. Foi agressivo com petistas e com escândalos de corrupção protagonizados pelos governos Lula e Dilma. Ganhou notoriedade por seus discursos calcados na correção no serviço público, postura que o fez ser incluído na lista de ÉPOCA dos 100 brasileiros mais influentes no ano de 2009. Poucos imaginavam que sua influência dentro do poder público tinha um contraventor como principal favorecido. “Ele explorou a ausência de parâmetros éticos na política”, afirma o filósofo Roberto Romano, professor de ética da Universidade de Campinas (Unicamp). “Mas esqueceu os próprios problemas e se tornou vítima dessa dialética.” Em 2004, Demóstenes subiu à tribuna do Senado e discursou sobre a reportagem de ÉPOCA que mostrava Cachoeira e Waldomiro Diniz. Pediu punição para Waldomiro, o então ministro José Dirceu e até para o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre Cachoeira, nem uma palavra.

Poucos parlamentares fazem da ética a sua causa. Menos ainda são os ousados como Demóstenes. Tal ousadia lhe deu espaço na mídia, credibilidade, um segundo mandato como senador e – talvez – a certeza de que suas atividades secretas nunca seriam expostas. Na semana passada, insatisfeito com a renúncia de Demóstenes da liderança do DEM no Senado, o partido queria que ele se desfiliasse. Demóstenes se recusava a renunciar ao mandato, por acreditar que assim eliminaria suas chances de, num futuro próximo, disputar uma nova eleição e retomar a sua carreira política. A queda de Demóstenes, cujo sigilo bancário foi quebrado pelo Supremo Tribunal Federal na semana passada, é proporcional à rapidez de sua ascensão. Retornar ao ponto que já ocupou no cenário político nacional será uma missão quase impossível.

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