quarta-feira, abril 11, 2012

Entendemos, ainda, a grandeza? - ÉLCIO VERÇOSA FILHO


FOLHA DE SP - 11/04/12

O relativismo contemporâneo: como Michel Teló nos mostra que a supervalorização da tolerância como virtude torna difícil criticar a mediocridade

Em nosso tempo, nada há que nos seja tão caro e tão representativo do nosso modo de ser quanto a concepção da tolerância como valor. Ser tolerante é, hoje, a suprema excelência.

Tanto as qualidades como todos os inumeráveis defeitos naturalmente humanos são, para nós, assunto exclusivamente privado.

Da mesma forma, o único defeito intolerável é o rompimento desse pré-contrato social, sob a forma da "intolerância" e do "autoritarismo", entendidos como "crueldade" ou "ausência de compaixão".

O princípio recebeu sua consagração definitiva na Constituição dos EUA com o direito de "buscar a felicidade" ("the pursuit of happiness"), que inclusive andam querendo enfiar também na nossa Constituição.

Ele foi o resultado de séculos de luta contra opressões de todo tipo, patrocinadas pelos porta-estandartes tradicionais do "bem" e da "virtude" -padres, militares, vizinhas fofoqueiras etc.-, e da natural desconfiança daí decorrente de que, por trás do "bem" e da "virtude", belos e radiosos ornamentos do discurso, há, quase sempre, uma inconfessada vontade de poder.

A conclusão lógica é que o melhor remédio para isso é que todos passam gozar, como o que há de mais sagrado, do direito de lançar-se na baixeza se a baixeza parecer o melhor caminho para ser feliz.

Escrevo baixeza sem aspas por uma boa razão. Um motivo recorrente para a defesa da tolerância é justamente a incapacidade de dar validade universal aos juízos avaliativos: "bom" e "mau", "alto" e "baixo", "nobre" e "vil" não têm validade em si; o seu sentido depende inteiramente do tempo e lugar em que são proferidos, quando não da mera visão pessoal do avaliador.

Como seres que se entendem cada vez mais como produtos autônomos (sic) do processo histórico -livres criadores dos "valores" e do conhecimento-, sentimos grande dificuldade em evitar essa conclusão.

Mas o caso é que essa posição, que podemos chamar de convencionalista, pós-moderna ou relativista, também tem problemas. É mesmo verdade que não temos nenhum conhecimento objetivo do que é "bom" e "mau", "alto" e "baixo", "grande" e "mesquinho" no sentido moral?

Da mesma forma que sabemos com certeza mais que intuitiva -com o perdão de Descartes- que existe um mundo efetivo, independente, fora de nós, é difícil não reconhecer que, de alguma forma, sabemos, para além de toda pose relativista, que Bach é, no campo da música, maior, "mais grande", mais digno de louvor e de imitação (enfim, "melhor") que Michel Teló.

Assim como sabemos, para usar um exemplo menos frívolo, que dar a vida por um amigo é maior, "mais grande", do que buscar a todo custo, por quaisquer meios disponíveis, meramente sobreviver.

A correção ou segurança desses juízos avaliativos parece clara para os melhores de nós (respectivamente os que conhecem algo de música e os que buscam sinceramente o bem) e vão em um sentido diverso daquilo que normalmente chamamos de "convicção pessoal".

Aí é que está: concordamos ainda com Aristóteles que, como Aquiles, mais vale queimar intensamente por um tempo breve em nome de causas belas e nobres do que passar uma vida inteira vegetando na mediocridade. (Uma prova curiosa de que ainda temos algum sentido da grandeza é o culto dedicado aos astros de rock que morreram jovens e viveram intensamente.)

Mas o caso é que não conseguimos mais, com as categorias de que dispomos -"tolerância", "respeito", "direitos"-, articular aquilo que experimentamos (o maior brilho e valor do que é simplesmente "grande", mais digno da nossa admiração) em um discurso racional.

Não é, assim, que o fenômeno da grandeza humana não seja (re)conhecível, como querem os entusiastas libertários no seu ceticismo de conveniência. Ele simplesmente não é mais pensável. Pelo menos para nós. Da mesma forma e pelas mesmas razões pelas quais não é mais pensável quem somos nem qual é o nosso bem.

Ao que parece, a grande e radical novidade é que, pela primeira vez na história, nós simplesmente não queremos saber. Eis o fundo sem fundo do nosso relativismo (moral, cultural etc.), onde parece residir toda a nossa "virtude": gloriamo-nos de não estar nem aí.

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