sexta-feira, março 02, 2012
Saudades do divã - MILTON HATOUM
O Estado de S.Paulo - 02/03/12
Foram apenas sete sessões de análise. E isso há décadas, mas até hoje me lembro dos longos minutos de silêncio nas tardes de sexta-feira (os insuportáveis momentos de mudez) e da fala lacônica, lacaniana da minha analista paulistana.
Era bela, alta, chique, tinha ombros largos, mãos delicadas e olhos de coruja. E um tique estranho: erguia a sobrancelha esquerda, como fazem certos atores, um tique que me parecia sedutor, mas isso podia ser apenas uma percepção apressada do meu olhar narcisista. Ou seria uma mensagem enigmática da minha querida lacaniana? Nunca decifrei esse tique, que eu apelidei "farolete" porque o olho esquerdo, em relevo, iluminava tenuamente o leito das lembranças e confissões. Também desse olho solitário sinto saudades.
Durante as sessões desconfortáveis (o divã era duro e estreito, quase uma cama de faquir) eu falava dos romances e poemas que havia lido, da descoberta de grandes livros, das fugas da faculdade de arquitetura para assistir às aulas de literatura de Davi Arrigucci Jr. (quem não tinha lido O Escorpião Encalacrado?). Falava de amigos perdidos, de amigos em via de perdição, discorria sobre o nosso sonho de justiça social, sobre a nossa sexualidade promíscua e inocente que buscava a felicidade, sobre o nosso rancor à caretice e a todo tipo de repressão e dogma. Só não falava de mim, do meu Id, do meu passado, da minha fase do espelho: nenhuma frase sobre a infância e seus lances sombrios, mágicos ou iluminados. Tudo isso permaneceu trancado a sete chaves com cadeado, e essa porta blindada só seria aberta mais tarde. Não que eu não tivesse traumas, neuroses, frustrações. Quem não os tem? Em meados da década de 1970, os estudantes da USP ou de qualquer outra universidade brasileira tinham tudo isso de sobra. Talvez por ser um tigre resistente à sondagem da minha psique, preferia comentar o conto A Terceira Margem do Rio, que era um modo oblíquo de falar do silêncio do meu pai ou do meu autoexílio em São Paulo, que me faria uma espécie de órfão ainda jovem.
Ela apenas me escutava, o olho esquerdo saliente, ambarino, terrível. Quando eu me calava, podia escutar o batimento grave do coração, como se eu estivesse sozinho num cemitério de uma cidade fantasma, ou num deserto noturno, sem vento, congelado.
Lembro que numa dessas sessões silenciosas ouvi um zumbido, que em poucos segundos se tornou pavoroso; quando acordei, por pouco não caí no tapete. Era o toque do despertador, que marcava o fim da sessão. Foi um trauma e tanto. Minha analista, lacaniana radical, sequer anunciava o fim do meu monólogo. Mas dessa vez o despertador interrompeu um sonho, que eu anotei sem demora, sentado à mesa de um boteco. Na sétima sessão deitei no divã e contei esse sonho.
Eu estava no porão da gráfica da faculdade de arquitetura e urbanismo. Eu e outros estudantes ouvíamos o discurso de Alex. Lembro que reconheci líderes de diversos grupos políticos: da esquerda católica à maoista, dos rígidos trotskistas a seus inimigos comunistas e socialdemocratas. Os anarquistas eram pouquíssimos e ocupavam uma pequena ilha no porão do sonho: uma ilha banida do continente. Em seu discurso, Alex nos alertava sobre os riscos e perigos da traição. Lembro que olhei de soslaio em meu redor, procurando o rosto de um suposto traidor; lembro que alguém me olhou com a mesma desconfiança. Mas Alex não se referia a um delator, e sim a um traidor de ideias e ideais. "Daqui a 30 anos", ele disse, "quantos de nós teremos traído nossos sonhos?"
Disse à minha analista que nesse momento escutei murmúrios e protestos, e logo em seguida me assustei com o trinado do maldito despertador. Ela sorriu. Foi um sorriso aberto, oceânico, de lábios enormes. E histórico: o primeiro em quase dois meses de divã. Também pela primeira vez ela me fez uma pergunta frontal: Quem é Alex?
Um estudante do curso de Geologia, eu disse. Foi assassinado por agentes da repressão em março de 1973. Pude reconhecê-lo no sonho.
Lembro que nessa tarde troquei algumas palavras com a analista, uma conversa que durou uns quatro ou seis minutos, e essa eloquência mútua me surpreendeu. Enfim, palavras, eu disse. E quase elogiei a voz dela, uma voz que, na minha memória de paciente, era sinônimo de assombração.
Abandonei o divã naquela tarde chuvosa, com a promessa de que um dia voltaria à sala branca. Busquei refúgio na leitura de ficção e poesia, e assim tentava espantar fantasmas e neuroses. Poucos anos depois, longe do Brasil e de seus generais, censores e torturadores, comecei a escrever meu primeiro romance e descobri um modo de ser menos infeliz, de mitigar o sofrimento e evitar o abismo da depressão. A promessa de voltar à sala branca foi vã. Mas tentei preencher as lacunas de silêncio com a linguagem escrita, essa autoanálise compulsiva, prazerosa e fantasiosa, que alguns chamam ficção.
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