sábado, março 24, 2012
Reconciliação com a democracia via direito penal? - JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL
FOLHA DE SP - 24/03/12
Sob o argumento de que o crime de desaparecimento forçado é permanente e, por isso, não fora atingido pela Lei de Anistia, pretendem-se iniciar procedimentos criminais.
Tal pretensão tem como fundamento a condenação do Brasil pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Ocorre que o tipo penal do desaparecimento forçado não existe no Brasil. A decisão da OEA comprova tal fato, ao determinar que o país crie essa figura jurídica.
Outro argumento utilizado para sustentar tal argumento é o julgamento da extradição 1.150 pelo STF. No caso, referente a um major argentino, com o fim de respeitar as instituições e a soberania daquele país, estabeleceu-se uma analogia entre o crime de desaparecimento forçado lá previsto e o nosso sequestro qualificado para extraditá-lo.
Mas, no âmbito penal, analogias não são admissíveis em prejuízo do acusado. Não cabe fundar ação penal em tipo inexistente, bem como na suposição, contrária à lógica e à lei, de que os desaparecidos estariam vivos.
Toda ditadura, independentemente da ideologia, é deletéria, mesmo quando a arbitrariedade se "limita" a cercear a liberdade de expressão. Ao referendar a tortura, as ditaduras se tornam mais espúrias, pois o corpo é templo sagrado.
Não obstante, o afã de punição não pode justificar o risco de abrir flancos em garantias individuais, que se aplicam a todos.
O princípio da legalidade, a extinção da punibilidade, a coisa julgada servem para tutelar os indivíduos em face do Estado, independentemente dos crimes praticados.
Considera-se uma grande conquista para a proteção dos direitos fundamentais a definição de crime contra a humanidade e sua imprescritibilidade. No entanto, o respeito aos mesmos direitos exige que novos conceitos tenham incidência futura, e somente após integração ao ordenamento nacional.
Não se pode, com o argumento de se tratar de crime contra a humanidade, discutir penalmente atos praticados há décadas.
O STF, ao julgar improcedente a arguição que objetivava declarar a Lei de Anistia contrária à Constituição Federal, reafirmou sua validade. Cada um dos votos constitui verdadeira aula de direito e história.
Querer desconsiderar essa importante decisão com fulcro em analogia abre um péssimo precedente para a democracia, que nunca está totalmente segura: vide a vontade recorrente de controlar a imprensa.
A reconciliação com a democracia não precisa ocorrer por meio do direito penal. No caso, nem pode.
Podemos rever o passado para preservar o futuro. Para tanto, pode-se estudar a criação de norma impossibilitando o Estado anistiar seus próprios agentes.
Assim, nenhum governante ficará tentado a abusar de seu poder, contando com a possibilidade de se anistiar -cabendo lembrar que a Lei de Anistia foi aprovada pelo Congresso Nacional, vindo a ser confirmada pela Emenda Constitucional que convocou a Constituinte.
Também creio que seja hora de um sério debate acerca do que constitui crime político. A Lei de Anistia, para aquele período da história nacional, conferiu uma ampla extensão a essa categoria, falando inclusive em atos de terrorismo, figura ainda não definida em nosso ordenamento.
Nesta oportunidade, já deixo firmado o entendimento de que a violência não deve, aprioristicamente, ser considerada política independentemente de quem seja o autor dos atos, não importa qual seja a causa.
Mas as novidades no âmbito penal e mesmo as novas interpretações devem valer para o futuro, para a manutenção do próprio Estado democrático de Direito.
Essas ações penais até têm a aparência de proteção dos direitos individuais, mas, com todo respeito, por melhor que sejam as intenções, se revelam porta para novas e indesejáveis violações.
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