domingo, março 04, 2012

O Kremlin não acha graça nenhuma - JOSHUA YAFFA

O Estado de S.Paulo - 04/03/12


Humor político é uma das faces mais populares - e divertidas - do movimento de oposição a Putin

O primeiro-ministro russo Vladimir Putin mal pode abrir a boca hoje em dia sem se tornar objeto de chacota. Depois que ele comparou as fitas brancas de manifestantes com camisinhas durante uma programa de televisão com participação dos espectadores, fotos adulteradas de Putin com uma camisinha pregada à sua lapela se tornaram virais online em poucos minutos.

No mesmo programa, Putin comparou os que se opunham ao seu regime ao bando de macacos renegados Bandar-log de O Livro da Jângal de Rudyard Kipling. O programa satírico mais popular da televisão do país o mostrou como uma jiboia com feições apatetadas.

As grandes manifestações contra o regime de Putin indicam muitas transformações importantes na vida política e civil da Rússia - incluindo a volta da sátira política. O humor político de hoje - a maior parte dele feito online - pretende fazer Putin e seus aliados parecerem perdidos, ultrapassados e, de certa maneira, não especialmente perigosos - uma ideia revigorante num país que cresceu acostumado ao poder incondicional de quem está no Kremlin.

No processo, os profissionais urbanos da Rússia estão forjando uma nova linguagem política: leve, muito mais viva, e espessamente revestida de ironia. Ela anuncia uma mudança significativa em como os russos se relacionam entre si e com os que os governam, uma mudança cultural que poderá durar além até da eleição presidencial de hoje, que Putin quase certamente vencerá.

Cutucar as peculiaridades da Rússia e de seu povo tem raízes na literatura do século 19, especialmente em escritores como Nikolai Gogol e Aleksei Konstantinovich Tolstoi (primo em segundo grau de Lev Tolstoi). Numa paródia de 1869 dos sofrimentos russos, Mikhail Saltykov-Schchedrin criou a ficcional Glupov ("Estupidópolis"), onde os cidadãos simplesmente aceitavam seu destino, embebedavam-se e matavam-se.

A sátira virou uma espécie de esporte nacional nos dias cinzentos e estéreis da União Soviética, quando o humor servia como porta de entrada numa realidade alternativa - e de fuga da versão absurda de vida soviética propagandeada pelo Kremlin. Anekdoty - piadas curtas, por vezes grosseiras, na forma de diálogos curtos, passadas entre parentes e amigos - ofereciam uma maneira restrita, mas potente, de vencer o medo de um Estado distante e todo-poderoso.

No ocaso da União Soviética, piadas zombavam das tentativas de Mikhail Gorbachev de reordenar a economia e a vida civil do país, como sua malfadada campanha contra a vodca em meados dos anos 1980. Elas continuaram sendo uma força poderosa nos anos 90, no governo de Boris Yeltsin, que era zombado por sua própria campanha individual pró-vodca.

Ressentido. Mas o humor político começou a enfraquecer depois que Putin foi eleito em 2000. Alguns dias depois da posse de Putin, Mikhail Zlatkovski, um dos mais renomados cartunistas políticos do país, foi chamado para uma reunião com o editor-chefe de seu jornal, que acabava de voltar de uma reunião especial no Kremlin. O editor disse a Zlatkovski: "Misha, não vamos mais desenhar imagens de Putin. O sujeito é irascível e ressentido."

No começo do mandato de Putin, ele comandou a compra do controle estatal da NTV, um canal de televisão independente e combativo que transmitia "Kukli", um programa que exibia versões em bonecos de políticos russos. Num episódio cáustico, Putin foi retratado como o Pequeno Zacharias, um anão abjeto da literatura alemão do século 19. Em 2002, a rede cancelou o programa.

Enquanto Putin consolidava seu poder, as receitas russas de petróleo aumentaram enormemente. Todo dia os russos viam suas rendas crescerem e suas oportunidades econômicas se ampliarem como nunca. A riqueza recém-descoberta e um governo forte e distante fomentaram o cinismo, a apatia e o desinteresse.

Começou a desparecer no público russo todo senso de envolvimento nos assuntos de governo; o mesmo ocorreu com o apetite pelo humor político. Nos últimos meses, contudo, no momento em que a classe média da Rússia - urbana, relativamente bem de vida e perfeitamente afinada com a internet - emergia como uma força política, ressurgia a rica tradição de humor e sátira política do país.

Renascimento. Para muitos manifestantes atuais, esta é a primeira vez que dão tamanha atenção à política, e eles estão cansados do tom sisudo que por muito tempo definiu a oposição política russa. Usam o humor para sinalizar que não estão interessados na política tradicional e não se levam - ou a Putin - muito a sério.

Por outro lado, as autoridades que se levam tremendamente a sério acabam parecendo atrapalhadas e estúpidas, como quando a polícia da cidade siberiana de Barnaul pediu para os promotores investigarem um "protesto" realizado por figurinhas de Lego e bonecos de South Park.

Ilya Krasilshchik, o editor de 20 e poucos anos da revista e arte e cultura Afisha e um dos organizadores originais dos protestos de dezembro em Moscou, disse-me que a ubiquidade da sátira dá aos manifestantes um sentimento de que "aquilo é um protesto, mas, ao mesmo tempo, não é realmente um protesto. Estamos fazendo piada, mas também somos sérios."

Surgiram tantas piadas antigovernamentais, vídeos e brincadeiras na internet nos dois últimos meses que Afisha publicou um "dicionário" deles no número da semana retrasada. Os verbetes incluíam "146%", uma referência à votação total risivelmente errada que a televisão estatal mostrou para uma região russa.

De acordo com a natureza amorfa, essencialmente sem liderança, do movimento de protesto atual na Rússia, o humor mais contundente anti-Putin hoje em dia não é produzido por instituições da mídia tradicional, mas simplesmente aparece na internet ou em cartazes feitos à mão em demonstrações. Uma das sensações de internet mais populares nos últimos meses foi um video musical chamado "Nosso Manicômio Vota em Putin", em que um suposto doente mental pergunta para onde foram as receitas de gás e petróleo do país (ele recebe uma injeção na nádega em resposta).

Twitter. A comédia política começou a surgir nos sites em língua russa antes da disputada eleição e floresceu de lá para cá. Uma das fontes mais populares de humor online é KermlinRussia, uma conta de Twitter satírica que começou em junho de 2010 zombando das postagens do presidente Dmitri Medvedev.

Agora que Medvedev foi se retirando da conversa pública após anunciar, em setembro, que não concorreria a um segundo mandato, a conta evoluiu para atacar novos alvos: a polícia, as autoridades eleitorais e o próprio Putin.

De um ponto de vista puramente humorístico, os dois profissionais por trás de KermlinRussia quase apreciam a volta de Putin ao Kremlin porque com suas encenações machistas - colocar coleira em urso polar no Ártico russo, por exemplo - ele é um prato feito para a sátira. Uma recente postagem em KermlinRussia zombou da reverência quase norte-coreana que a televisão estatal mostra para com as jogadas de relações públicas de Putin: "Na floresta de Ryazan, onde um incêndio foi apagado pelo primeiro-ministro em pessoa, três safras de toras já foram colhidas." Como diz um dos autores de KermlinRussia: "Putin deixou de ser assustador. Ele começou a ficar idiota."

Talvez ninguém tenha captado essa idiotice com maior incisividade, ou popularidade, que Poeta Cidadão, um programa semanal em que Dmitri Bykov, um talentoso jornalista e poeta, pega poemas clássicos russos e lhes confere um texto inteiramente novo com base nas notícias da semana, para ser lido em voz alta com tom solene e zombeteiro pelo ator Mikhail Yefremov.

Embora o programa tenha matizes políticos óbvios, Yefremov insiste em que sua principal finalidade é divertir, e não defender alguma causa particular. "Não se deve levar a política tão a sério", ele me disse. "E, nesse sentido, espero que nosso programa tenha ajudado." Ou, como ele diz: "É melhor rir dos políticos do que ser metido na prisão."

O humor e o senso de ironia não impedirão Putin de retornar à presidência, mas contribuíram para um sentimento de engajamento e vitalidade cívica que seguramente sobreviverão à eleição de hoje. Como diz Krasilshchik: "Afinal, não é só pelas piadas que estamos nos unindo." / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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