sexta-feira, março 23, 2012
Na guerra dos maus costumes - MARIA CRISTINA FERNANDES
Valor Econômico - 23/03/12
A voz era de profeta do apocalipse e as imagens, de um éden terrestre: "Terras a perder de vista, milhares de cabeças de gado, pistas de pouso, mansão com piscina".
Durante 26 minutos o programa da Record "Domingo Espetacular", que compete em audiência com o "Fantástico", da Globo, expôs os indícios de enriquecimento vertiginoso do bispo que comanda a Igreja Mundial do Poder de Deus.
A denominação compete com a Igreja Universal, dona da Record, pelos evangélicos pentecostais. Para isso, também conta com um canal de TV, a Rede 21, arrendada do grupo Bandeirantes.
A Universal deu ao rival o mesmo tratamento que seus bispos receberam no noticiário quando a Igreja entrou no ramo das comunicações.
Nascida da costela da Universal, a Igreja Mundial do Poder de Deus ainda não tem a mesma penetração política de sua congênere cujo PRB chegou ao ministério. Mas a guerra aberta entre as duas igrejas, cujo campo de batalha são concessões públicas de um Estado laico, indica o flanco político que lhes foi aberto.
Não foi o PT que inventou o pentecostalismo mas foi sob a era petista que suas denominações, que falam a linguagem da prosperidade, mais avançaram nos negócios da fé.
Tampouco foi o PT que proibiu o aborto ou inventou o preconceito contra os homossexuais, mas a força política adquirida por essas denominações no Congresso e fora dele tem sido um obstáculo crescente à secularização da pauta dos direitos humanos.
Confronto de pentecostais é de corar congressistas
Também foi na era petista que as pastorais sociais perderam rebanho para os programas sociais do governo e viram o equilíbrio de forças na Igreja Católica pender para a pauta moralista, mais competitiva com o avanço pentecostal.
Em comum, evangélicos e católicos ganharam terreno sobre a política partidária no poder de mobilização social como mostrou a campanha eleitoral de 2010. Esta semana os católicos que protestam contra petistas-que-matam-criancinhas voltaram ao centro de São Paulo com cartazes de fetos sendo espetados pela estrela do partido e alusões ao homossexualismo na esfera eleitoral.
O governo Dilma Rousseff ora age afirmativamente frente a essa pauta, como na escolha de Eleonora Menicucci para Secretaria de Políticas para as Mulheres, ora na defensiva, como no episódio em que o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, desculpou-se por ter colocado o dedo na ferida do conservadorismo pentecostal.
Esse avanço se reflete no peso que as bancadas religiosas ganharam na pauta do Congresso. Atuam pelo poder de veto. Da mesma forma que, nos Estados Unidos, o direito ao aborto acabou sendo decidido pela Suprema Corte, no Brasil a união civil de homossexuais, barrada no Congresso, só seria reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.
Na discussão da Lei da Geral da Copa, que somou uma Casa Civil sem autonomia a uma liderança que pegou o trem andando, foi o veto dos evangélicos à bebida nos estádios, e não a prevalência do Estatuto do Torcedor que moveu o pano de fundo da trapalhada.
Essas pautas suprapartidárias, encabeçadas por duas das bancadas mais fortes do Congresso - evangélicos e ruralistas -, têm servido ao jogo de barganha dos partidos no confronto com o governo do qual se dizem aliados.
A aposta de que grupos minoritários dentro dos partidos aliados podem tomar as rédeas no Congresso ainda está por se mostrar devidamente conectada com a realidade das eleições municipais.
Não são apenas os partidos que ficam mais dependentes do governo federal para eleger seus prefeitos. Agraciados com o tempo de televisão no horário eleitoral gratuito, os aliados têm uma moeda de troca importante para o partido majoritário do governo que tem a pretensão de também ser o maior nas prefeituras.
É disso que tratam as alianças, mas o petista atento a esse jogo continua sendo aquele que recupera sua saúde em São Bernardo.
Dilma parece mais concentrada na estratégia de colher apoio na sociedade a sua cruzada contra os maus costumes nas relações com o Congresso. Pela primeira vez em discurso público, a presidente expôs a estratégia de cativar a opinião pública para enfrentar o bloqueio de seus aliados.
Ao escolher o jeitinho brasileiro como alvo - "a maioria dos brasileiros cansou de conviver com práticas marcadas pela lassidão e com nossa fama de país do jeitinho" -, a presidente, marca uma diferença de apelos feitos pelo antecessor Luiz Inácio Lula da Silva em momentos de crise política.
Lula dirigia-se ao brasileiro que, como ele, tinha saído de baixo e vencido na vida enfrentando ricos e poderosos - "Eles vão ter que me aguentar".
Com a crítica ao jeitinho, Dilma mira uma base social difusa que tanto pode estar na classe média estabelecida quanto naqueles que prosperam na cultura do esforço pessoal com a ajuda do Prouni e do crédito consignado.
Ao contrário de Lula, Dilma não conta com o entusiasmo dos movimentos sociais. Colheu ontem manifestações mais concretas de apoio dos empresários com quem se reuniu do que dos sindicalistas que recebeu na semana passada, embora ambos sejam igualmente sensíveis às medidas que o governo vier a tomar contra a desindustrialização.
Ao escolher o apelo difuso contra os maus costumes, Dilma parece apostar num apoio que se difunde para além dos meios tradicionais de mobilização social. É uma aposta da era virtual, mas com uma base que ainda está por ser testada.
São as igrejas pentecostais que, nos últimos anos, têm demonstrado capacidade de mobilizar e convencer. Não apenas pelas marchas e cultos gigantescos, mas pela capilaridade de seus pastores - cujos templos ficam abertos de madrugada - e pela penetração de seus programas de televisão.
Se a guerra é de costumes, o confronto deflagrado no último fim de semana entre os pentecostais faz as raposas que emparedam Dilma no Congresso parecerem anjos.
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