terça-feira, março 13, 2012

Janelas que se abrem - JOSÉ PAULO KUPFER


O Estado de S.Paulo - 13/03/12


Os cortes promovidos pelo Banco Central na taxa básica de juros, que a estão levando para um inédito nível nominal de 9% ou 8,5% ao ano, começam a causar impactos variados na economia. Não é só nas cadernetas de poupança que a redução da taxa de referência brasileira (taxa Selic) faz emergir a necessidade de rearranjos. Essa é apenas a parte mais visível da questão.

Além das cadernetas, a eventual chegada da Selic a terrenos próximos daqueles mais baixos em que se acomodam os juros em outras economias tende a afetar um amplo leque de sistemas e áreas em cujo DNA é fácil localizar resistentes cromossomos dos tempos de hiperinflação. Se for possível conter os juros básicos por um período mais longo, abrem-se, portanto, janelas de oportunidade para livrar a economia de entulhos inflacionários, que estão na origem de diversas barreiras ao crescimento.

É variada a lista dos problemas alimentados por esses entulhos. A administração da dívida pública e as linhas de crédito direcionadas - públicas e privadas -, operadas a taxas diferenciadas e/ou subsidiadas, são dois dos melhores exemplos do que, com juros mais baixos, poderá ser mais facilmente revisto, para melhorar a administração da economia.

Juros mais baixos devem afetar também a composição dos portfólios de aplicação financeira, com estímulos ao deslocamento de parte dos recursos da renda fixa para renda variável - o que pode ampliar os espaços para o financiamento a custos menores, pela via da oferta de ações, de investimentos privados. Uma Selic menor obrigará ainda, por exemplo, a uma renegociação - com alívio fiscal para os devedores e, portanto, dando margem a sobras para investimentos - nos termos do acordo de refinanciamento pela União das dívidas estaduais e municipais, firmado há 15 anos, como parte do processo de regularização fiscal que culminou com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Dentre as distorções que uma taxa de juros mais baixa pode ajudar a dissolver, uma das mais emblemáticas é a elevada participação da Letra Financeira do Tesouro (LFT) na composição da dívida pública. Criadas em 1987 pelos futuros pais do Plano Real, na saída do Plano Cruzado II, as LFTs são atreladas à taxa Selic e conectam o mercado monetário com o mercado da dívida pública - esta conexão é um caso único no mundo.

O título, que nasceu em ambiente de hiperinflação, resiste bravamente à estabilização monetária, já tendo chegado a representar dois terços do total da dívida mobiliária, na passagem do segundo governo FHC para o primeiro de Lula. Ainda hoje responde por um alentado terço da composição da dívida pública. Com rendimento diário e riscos limitados, as LFTs são acusadas de serem elemento central no desestímulo à estruturação de linhas de financiamento de longo prazo pelo setor privado.

Agora, aproveitando o espaço que se abre com a queda dos juros, o governo decidiu acelerar o passo para reduzir o volume de LFTs a 10% do total da dívida mobiliária pública interna até 2015. No Plano Anual de Financiamento (PAF), divulgado pelo Tesouro na quinta-feira, a meta é reduzir o estoque de LFTs, em 2012, de 30% para um mínimo de 22% ou um máximo de 26%. Para isso, o governo proibiu que fundos públicos e estatais adquirissem LFTs, reduzirá a oferta do papel e tentará acelerar a sua troca por títulos prefixados ou atrelados a índices de preços, uma vez que três quartos do estoque de LFTs vencem nos próximos quatro anos.

O caso da reforma nos termos do refinanciamento de dívidas estaduais e municipais, já em discussão no Congresso e no governo, como mostra o jornal Valor Econômico, é um exemplo de como as sombras do passado inflacionário estão vivas - e, infelizmente, ativas. Além da correção pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), calculado pela Fundação Getúlio Vargas -, Estados e municípios pagam à União de 6% a 9% de juros anuais nas parcelas refinanciadas de suas dívidas. Um contrato com indexação e juros reais acima daqueles que o próprio mercado considera como a "taxa neutra" do momento (5,5% ao ano, segundo a mediana das estimativas) parece coisa de um passado distante - e, sem dúvida, é mesmo.

A caderneta de poupança, no resumo da história, é só a ponta de um iceberg de estruturas corroídas pelo tempo, mas não inteiramente demolidas, que ainda atravancam o desempenho da economia brasileira. Será decepcionante se a oportunidade que agora surge para limpar de vez o terreno for desperdiçada.

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