domingo, fevereiro 19, 2012

Vírus assassinos e medo da ciência - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 19/02/12



Iniciativa de interromper a pesquisa sobre o H5N1 e a circulação livre dos resultados é alarmante

No final de janeiro, cientistas de vários países assinaram uma moratória de 60 dias cessando certos tipos de experimentos genéticos envolvendo o vírus H5N1, que causa a gripe aviária. Sei que estamos em ritmo de Carnaval, mas achei o assunto importante, mesmo nesta época de hedonismo puro.

O vírus H5N1, comumente encontrado em aves selvagens, raramente afeta humanos e não é transmitido facilmente. Porém, quando afeta, sua eficiência é alta: das 500 vítimas registradas, metade faleceu.

A interrupção das pesquisas foi necessária após um grupo da Holanda mostrar que, quando geneticamente modificado, o vírus pode ser transmitido entre ferrets, mamíferos que fazem o papel de cobaias. O grupo holandês queria demonstrar que devemos ter cuidado: pequenas mudanças podem transformar o vírus numa doença letal e altamente contagiosa, com potencial de causar uma pandemia catastrófica. Ao aprender mais sobre o vírus, poderíamos nos preparar melhor caso ele venha a se transformar.

Os resultados levantam uma série de questões sobre a natureza da pesquisa científica e o seu controle. Tanto que a OMS (Organização Mundial da Saúde) organizou uma conferência às pressas na semana passada com alguns especialistas.

Parece enredo de filme: acidente em laboratório permite que o vírus escape e comece a infectar a população, matando milhões.

Na imaginação pública, é o mito do doutor Frankenstein, o cientista que, mesmo agindo com a melhor das intenções, cria um monstro assassino que foge do seu controle. (Ao menos na versão de Hollywood, mais popular do que a original de Mary Shelley, uma exploração brilhante da ciência de ponta de sua época -início do século 19- e dos limites do poder que temos sobre as forças da natureza).

Quando cientistas veem necessidade de censurar o trabalho de outros cientistas podemos ter certeza de que o debate será ferrenho. Afinal, um dos aspectos mais essenciais da ciência acadêmica é justamente sua abertura: qualquer um pode ter acesso aos dados e à metodologia usada, de modo que os resultados possam ser replicados, testados e, em geral, melhorados.

A iniciativa de interromper a pesquisa e a livre circulação dos resultados é alarmante. Será que esse tipo de pesquisa deve ser proibido? Será que deve ser relegado a laboratórios ultrasseguros, como os que guardam amostras de varíola ou ebola? Será que salvaguardas podem ser implementadas de modo que detalhes-chave sejam revelados apenas para pesquisadores selecionados? E quem decide que pesquisadores são esses? Isso me lembra a paranoia durante o Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica na Segunda Guerra. O medo de espionagem quase destruiu a carreira de J. Robert Oppenheimer. Imagine só as teorias de conspiração que surgirão a partir do vírus.

Da bomba atômica deveríamos aprender que a pesquisa nunca anda para trás. Uma descoberta nunca é esquecida. Por outro lado, não devemos equacionar a ciência com a caixa de Pandora. No caso do H5N1, a pesquisa que estuda como o vírus pode ser transmitido entre humanos é o melhor modo de entendê-lo. Ou, caso ocorra, de como criar uma imunização eficiente.

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