domingo, fevereiro 26, 2012

Rússia e Europa:juntas ou separada? - IGOR IVANOV

O ESTADÃO - 26/02/13


Estando no mesmo continente, os dois devem superar os ressentimentos e desconfianças, trabalhar juntos, complementando-se, para não serem perdedores na corrida global

Na Rússia, a crise financeira da União Europeia (UE) é observada com matizes. Alguns a veem com certa simpatia, enquanto outros a observam com malícia. As dificuldades da Europa reabrem o debate sobre a relevância do "europeu" na Rússia, que surge periodicamente em nossa história: o ocidental frente ao eslavo. Atlantistas e euro-asiáticos. Liberais e conservadores. Agora, os "eurocéticos" russos insistem em debater o que é mais importante e mais próximo: Europa ou Ásia? UE ou China? Os países desenvolvidos ou os emergentes?

Esse debate não faz muito sentido. Na era da globalização, o âmbito geográfico tradicional perde relevância, e é impossível distinguir entre Oriente e Ocidente. A geografia deixou de ser um fator determinante para a ordem econômica, o estilo de vida ou as perspectivas de desenvolvimento. As empresas europeias fabricam na China, os jovens japoneses estudam em Oxford, a roupa de grife italiana é confeccionada na Malásia e os engenheiros indianos programam para o Vale do Silício sem sair de sua Bangalore natal. Portanto, é muito mais produtivo diferenciar não pela geografia, mas pelo êxito (ou fracasso) em adotar as tendências atuais e aproveitar as vantagens competitivas.

Em Moscou, e não só aqui, elevam-se vozes proclamando que o centro de gravidade da atividade econômica mundial está se deslocando do Atlântico para o Pacífico, que o "projeto europeu" é demasiado complexo e difícil de ser aplicado, que a Europa não está em absoluto preparada para os desafios globais e está ameaçada pela crescente acumulação do poder asiático. Eles concluem que a Rússia devia se distanciar progressivamente de uma Europa inevitavelmente decadente, vinculando seu futuro à "civilização do Pacífico".

Ninguém duvida das recentes conquistas das economias asiáticas, mas é arriscado falar de declínio europeu. Há 100 anos que se anuncia a decadência europeia, mas o continente continua tendo um importante papel na economia global, fonte de inovação tecnológica, e um grande laboratório social. O potencial do projeto europeu está longe de se esgotar. O ritmo de modernização das economias asiáticas é, com certeza, admirável, mas não se deve esquecer que a modernização social e política está notavelmente atrasada na região. Em outras palavras: hoje, ninguém tem a liderança garantida.

Mudanças muito estritas estão se impondo às regras do jogo; todas as regiões estão competindo duramente para defender seu lugar e jogar um papel na economia e na política futuras. A feroz concorrência global não exclui - e geralmente implica - uma colaboração mais estreita. A Europa e a Ásia, em particular, necessitam uma da outra nos planos econômico, tecnológico e cultural. Os modelos "europeu" e "asiático" são complementares e essa interdependência parece até aumentar com o passar do tempo.

Mediador. Nesse contexto, o que se passa com a Rússia? Será que ela poderá se tornar um mediador ativo entre as duas grandes regiões? A resposta a essa pergunta depende, em grande parte, do equilíbrio de poder no mundo e do futuro do próprio país. Na verdade, hoje a questão não é se a Rússia pertence à Europa ou à Ásia, mas sim uma muito mais pragmática: a Rússia não deve se desprender da cooperação emergente entre os dois continentes nem ficar à margem do processo de integração econômica, científica, educacional e cultural.

Por desgraça, essa ameaça é muito real. A Rússia está presente nos mercados da Eurásia, mas cabe assinalar que sua participação nos mecanismos de cooperação e integração é muito superficial, atuando principalmente como fonte de matérias-primas e energia para seus vizinhos.

Essa situação não satisfaz as expectativas e necessidades de ninguém. Não há alternativa real a uma orientação europeia da política externa russa, Não se trata apenas de que a Europa continua sendo parceira econômica mais importante da Rússia; na Europa estão os principais mercados russos e ali estudam, trabalham e fazem turismo os cidadãos russos. A Rússia foi, é e será parte da Europa nos planos geográfico, histórico e cultural.

Alguns dirão que a Rússia é um país europeu, mas que se trata de "outra Europa". Sua relação com o "restante" da Europa continuará sendo difícil e controvertida. Essa afirmação talvez tenha certa lógica. Mas a verdadeira pergunta é: a evolução do restante da Europa é complicada somente em suas relações com a Rússia? Tomemos a Alemanha. Há 100 anos apenas, muitos intelectuais a leste do Reno duvidavam que a Alemanha fosse verdadeiramente europeia. Mas depois ela se converteu na locomotiva do processo de integração europeia na segunda metade do século passado. E não foi difícil e controvertido o retorno da Espanha ao espaço político, econômico e cultural europeu depois da morte de Franco?

Para a maioria de nós, a Rússia permaneceu afastada do Ocidente no século 20, separada por um profundo abismo ideológico. O destino de uma Rússia europeia era extremamente difícil (embora ela fizesse parte da civilização europeia no sentido mais amplo; o marxismo, aliás, é um produto da tradição filosófica europeia). Hoje, a Guerra Fria terminou, e o conflito ideológico entre a Rússia e a Europa está em retirada. Então, por que persiste a pergunta de se a Rússia pertence à Europa?

Talvez isso não se deva somente à inércia do pensamento. Grande parte da responsabilidade por a Rússia não ser totalmente parte da Europa é a própria Rússia. Ainda temos de aprender a ser europeus; esse conhecimento não se adquire de imediato. Ainda hoje, nem sempre entendemos a lógica de nossos parceiros europeus, nem levamos em conta os matizes de sua política.

Também é fácil censurar nossos parceiros. É conhecida a lentidão com que a burocracia europeia avança. Para a Rússia, poderia ser mais fácil negociar com cada um dos Estados-membros do que com a União Europeia em seu conjunto.

Uma coisa está clara: não existe um caminho fácil. Qualquer retorno da Rússia ao âmbito europeu requererá persistência e paciência, e uma inversão política no longo prazo por ambas as partes. Esse esforço terá de ser feito nas áreas que nos unem. Rússia e Europa sempre se orgulharam da qualidade de seu capital humano. A produção pode se deslocar para a China ou a Indonésia, mas o capital humano continuará sendo a nossa principal vantagem competitiva e o bem mais importante de nossa cultura.

Modernização. O capital humano é o motor da modernização - e não a capacidade industrial ou as reservas monetárias. A Rússia e a Europa têm tradição do capital humano como motor do crescimento. E têm muito que oferecer ao mundo nesse campo. Isso implica eficácia em nossa cooperação em âmbitos como educação, estratégias de pesquisa, política cultural e social, saúde, gestão das migrações e desenvolvimento da sociedade civil.

Evidentemente, a interação social entre Rússia e Europa não pode se desenvolver desligada da cooperação em matéria de segurança. O interesses estratégicos russos coincidem objetivamente. Falem com qualquer político em Berlim, Bruxelas, Madri ou Moscou sobre as ameaças à segurança russa e os desafios globais, Os diagnósticos provavelmente serão muito similares, e as soluções propostas também. Não gostaria de simplificar em excesso - nem todas as prioridades da Rússia e da UE coincidem totalmente - embora isso não se deva apenas a nossa diferente situação geopolítica. Dentro da própria UE nem sempre há unidade de critérios. O importante é que todos nós - do Atlântico aos Urais, de Vancouver a Vladivostok - estamos unidos por desafios e ameaças comuns. Essa realidade, que é pouco provável que mude no futuro próximo, determinará nossa cooperação em matéria de segurança.

Os céticos alegarão que este não é o melhor momento para empreender novas iniciativas nas relações entre a Rússia e a Europa, demasiado empenhadas como estão ambas em seus assuntos internos. Não seria talvez o caso de fazermos uma parada para avaliar as situações emergentes e só então retomarmos o diálogo?

Quero reafirmar que esse é o caminho do desenvolvimento global, profundo e duradouro, e não um capricho dos políticos. Nossos políticos não podem ignorar as consequências negativas para seus países se demoram a empreendê-lo.

Vivemos no mesmo continente. Não temos tempo sobrando para demonstrar nossa competitividade em um mundo globalizado. Outros países e regiões não vão esperar que superemos nossos ressentimentos, desconfianças e rixas. O mundo continuará avançando e a velocidade da mudança só aumentará. Também aumentará o número de candidatos à liderança mundial; muitos deles não surgirão na Europa. Trabalhando juntos, complementando-se, será mais fácil que Rússia e Europa não sejam perdedores nessa corrida mundial. O século 21 não deve ser um século de previsões sombrias sobre a decadência de nossa civilização comum. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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