quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Pé na jaca x pé no talco - ANTONIO PRATA


FOLHA DE SP - 22/02/12

Deve haver um momento na formação de todo indivíduo em que ele decide se irá sentar-se na primeira fileira ou se aderirá à turma do fundão. Algum ponto obscuro e fundamental entre o desenvolvimento intrauterino e a última chupeta que determina se ele vai estar mais pro cauteloso cidadão que entrega a declaração do imposto de renda no primeiro dia do prazo ou mais pro tio que, depois da terceira cerveja, pula de bombinha na piscina e faz uma demonstração de "Baleia Branca" aos sobrinhos de sete anos.
Comigo, algo muito curioso se deu -ou melhor, não se deu. Pulei essa etapa. Sou dois. Um monge franciscano e um Rei Momo vivem dentro de mim, revezando-se no uso e abuso deste corpo, como se eu fosse uma casa de cômodos. (Ou de incômodos, dependendo do que os inquilinos façam aqui dentro.)
Meu lado certinho gosta de granola com iogurte desnatado no café da manhã e comprou, recentemente, um aparelho que auxilia nos exercícios abdominais. O Rei Momo gargalha, diz que se recusa a compactuar com essa época covarde que, em vez do mundo, quer mudar a taxa de triglicérides -e dá mais uma dentada num naco de salame.
O ideal de felicidade do monge é, depois de correr na esteira e tomar banho, sentar em sua poltrona: uma garrafinha de água com gás numa mão, um livro na outra. O ideal de felicidade do pândego é sair sem rumo, encontrar um amigo num bar, ir dali comer uma bisteca no Sujinho e acabar numa roda de samba, num quintal desconhecido, fazendo carinho com o pé num vira-lata e descendo a mão num tamborim. (O Rei Momo já foi avisado diversas vezes pelo monge para não misturar álcool e instrumentos de percussão, mas cadê que ele escuta?)
O CDF sente uma paz no coração ao regar a samambaia e acredita que a vida está realmente bem encaminhada quando corta as unhas dos pés e põe talco no tênis. O fanfarrão só crê que a vida valha à pena quando os batimentos passam de 150 por minuto.
O monge aperta a pasta de dentes pela base, admira João Cabral e as grandes obras da engenharia. O Rei Momo usa faca de cozinha como chave de fenda, é fã do Jim Jarmusch e da seleção de 82. Enquanto o primeiro repete o conselho de Nelson Rodrigues -"jovens, envelheçam!"-, o segundo soluça Bandeira: não quer saber de lirismo que não seja libertação.
O espartano acusa o estroina de tentar fazer seu desequilíbrio passar por ousadia. (Que lirismo libertário há em se cantar "lá lá lá iá" na madrugada de uma quarta, roçando o pé num cão pulguento?) O Rei Momo acusa o monge de tentar fazer sua covardia passar por disciplina. (Que virtude há no autocontrole de quem não tem coragem de se descontrolar?)
Como podem esses antípodas habitar o mesmo corpo? Não podem, meus caros, por isso vivo sob fogo cruzado, recebendo no peito as balas e bombas dos exércitos inimigos. Veja hoje, por exemplo: nos últimos cinco dias o folião reinou incólume e agora, enquanto rolo na cama, nesta gelatinosa Quarta-Feira de Cinzas, me abandona nas mãos do pontífice, que se aproxima zunindo seu chicote. Não fui eu, seu moço, foi ele, eu digo, escondendo-me sob os lençóis e já prevendo uma longa temporada de granola, esteira e água com gás.

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