segunda-feira, fevereiro 27, 2012
Operárias da 'Mariângela' - JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O Estado de S.Paulo - 27/02/12
Batimentos da história, batimentos da vida. Francesco Matarazzo, em 1900, apoiado por um banco inglês, que aqui estimulava talentos empresariais, como o dele, ergueu no arrabalde do Brás o imponente Moinho Matarazzo. Ia produzir aqui mesmo a farinha de trigo até então importada. Seu consumo crescia, promovido pelos novos costumes alimentares trazidos pela imigração italiana, como o da pasta e o do pão nosso de cada dia. Farinha pedia sacos de algodão e, em 1901, Matarazzo inaugurava, ali ao lado, a também imponente Tecelagem Mariângela. Os prédios das rugas dessa história ainda estão lá.
Em 1917, a greve geral deu o alerta de que as obsoletas e iníquas relações de trabalho passavam dos limites na indústria paulista. Na porta do Moinho, a Força Pública atira contra um piquete. Fere mortalmente o operário espanhol José Martinez, que morrerá na Santa Casa. Morava na Rua Caetano Pinto. A multidão atravessa em silêncio toda a cidade, carregando seu caixão. Na porta do cemitério do Araçá, uma operária discursa. A cidade se tornava palco de novos personagens e ouvia novas vozes. O Brasil já era outro.
Trabalhavam na "Mariângela" 1.800 operários, na maioria mulheres, algumas ainda crianças. Moravam por ali mesmo, de famílias originárias de Polignano a mare, região de Bari, na Itália. Devotas de San Vito Mártire, secretamente cristianizado por Crescência, sua ama de leite, e martirizado pelo imperador Diocleciano, em 304. Perto da fábrica, ergueram os bareses sua igreja, onde celebram, todos os maios, em animada festa de comes e bebes, a memória de seu padroeiro. O tempo passou, as fábricas fecharam. Pelas ruas próximas uma humanidade abandonada se deixa ficar.
Mendigos, moradores de rua, desocupados, famintos, embriagados esperam. Esperam os operários que não chegam; os patrões que não vêm; o moinho que não mói; a festa que não começa; a flor que não abre; o apito da fábrica que não soa, que não desperta, que não chama nem reúne. Esperam em vão. A brisa sussurra ainda o gemido do operário ferido na repressão da greve inaugural. Tiro. Pasmo. Sangue. Punhos cerrados dos sem direitos. Ervas que brotam entre as pedras desses começos e fins. Na rua vazia, os passos do silêncio atrás do tempo que se foi.
Na porta da "Mariângela", as moças já não esperam namorados. Lá dentro, já não se fia o fio, já não se tece o pano nem a veste nem o sonho nem a luta. Lá dentro, já não se fala. Lá dentro, já não se escuta. Ali já não há beijos furtivos, olhares tímidos, disfarçados, roçar de mãos, desejos envergonhados, sussurros de amor no meio do vozerio dos operários. Esperas, esperanças. Portão fechado, teares quietos, operárias mudas. Os pés não "entredançam" os passos do trabalho. Nem as mãos entretecem no silêncio dos ausentes. Esperanças, esperas.
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