sexta-feira, fevereiro 17, 2012

O caso raro do coronel Davis - MOISES NAÍM


FOLHA DE SP - 17/02/12

Militar não acredita que EUA sairão do Afeganistão em 2014, como prometeu o presidente Barack Obama


É provável que você nunca tenha ouvido falar de Daniel Davis. Ele é tenente-coronel do Exército dos Estados Unidos, trabalha no Pentágono e participou das duas guerras contra o Iraque e da guerra no Afeganistão. Regressou recentemente de sua última missão nesse país e escreveu um relatório que começa assim: "Em seus comunicados ao Congresso e ao povo americano, os militares de mais alto escalão distorceram a tal ponto os fatos sobre a situação real no Afeganistão que a verdade se tornou irreconhecível. Isso prejudicou a credibilidade dos EUA diante de aliados e inimigos, limitando gravemente nossa capacidade de conquistar uma solução política no Afeganistão. Já custou bilhões de dólares que, se a verdade tivesse sido conhecida, o Congresso jamais teria aprovado; essa conduta de nossos líderes militares vem prolongando a guerra. Mas o maior custo decorrente do logro são as dezenas de milhares de militares feridos, mutilados ou mortos cujo sacrifício resultou em pouco ou nenhum benefício ao país".

E esta é apenas a versão pública do relatório de Davis. Ele também produziu uma versão confidencial. Não satisfeito com isso, o coronel Davis publicou um artigo explosivo na "Armed Forces Journal", em que afirma: "Tenho sido testemunha da ausência de êxito em qualquer nível... Quantos mais terão que morrer em nome de uma missão que não está tendo êxito?".

Davis me disse que mais de 800 mil pessoas leram esse artigo. E foi apenas depois de toda essa atividade pública que ele informou a seus superiores. Quando o entrevistei, o fiz ver que essa é a conduta de alguém que parece não se importar com a possibilidade de ser expulso das Forças Armadas -ou até mesmo levado a julgamento. "Nada disso", Davis respondeu. "Esta é minha vida. Quero continuar nisto enquanto eu puder servir a meu país."

Que a guerra no Afeganistão esteja indo muito mal não constitui surpresa. A surpresa é que, segundo Davis, ela vai muito pior do que concluem os relatórios de militares americanos. Outra surpresa é que um oficial na ativa esteja infringindo todas as regras e denuncie seus superiores no Pentágono. E o mais surpreendente é que Davis ainda não tenha sido castigado.

Uma possibilidade é que o coronel goze da proteção de um grupo de generais dissidentes e seja, de certa forma, porta-voz desse grupo. Na conversa que teve comigo, Davis negou isso com veemência. A outra hipótese é que o Pentágono receie a possibilidade de uma represália aumentar mais ainda a visibilidade e influência do coronel. Finalmente, outra surpresa é que o coronel Davis me disse que não acredita que os EUA vão sair do Afeganistão em 2014, como prometeu o presidente Obama. Para Davis, a estratégia provavelmente será deixar fortes bastiões militares em alguns locais estratégicos do país. Segundo ele, as tropas deixadas nesses locais devem dedicar-se primordialmente a capturar -ou matar- os terroristas que usem o país como base. É uma maneira brutal de dizer que não existe esperança alguma de que apareça no Afeganistão uma nação pacífica, próspera e democrática.
Tradução de CLARA ALLAIN

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