sábado, fevereiro 04, 2012
A estatização da esmola - CELSO MING
O Estado de S.Paulo - 04/02/12
"Não dou esmolas porque pago meus impostos."
Afirmações assim podem causar estranheza. Parecem reforçar escapismo da responsabilidade social, apenas porque o cidadão dá a César o que é de César.
Mas fazem certo sentido. Não se trata aqui de saber se quem está num automóvel deve pingar moedas sobejantes nas mãos dos garotos que fazem truques com bolas de tênis nos cruzamentos ou recusar-se a isso para não estimular a exploração infantil - como recomenda a Fundação Abrinq. E nem de fazer a releitura de um antigo provérbio chinês que aconselha a ensinar o pobre a pescar em vez de dar-lhe um peixe.
As religiões modernas incentivam ou incentivaram a prática de dar esmolas como boa ação ou ato de misericórdia: "Vendei vossos bens e dai esmolas", determina o Evangelho de Lucas (12, 33). Um dos mais importantes movimentos de renovação da Igreja Católica foi o surgimento das chamadas Ordens Mendicantes, entre as quais se distinguiu a Congregação dos Franciscanos - cujos membros fazem voto de pobreza e cuja sobrevivência, em princípio, depende até hoje de doações de pessoas e famílias.
Uma das características dos tempos modernos é a de que o Estado assumiu funções antes privadas e passou a desenvolver políticas de assistência social cada vez mais universais. Trata-se não somente de garantir albergue e alguma sopa para os pobres, mas também de fornecer seguro-desemprego, Bolsa-Família, educação básica e assistência médica gratuitas.
Essas políticas também se fazem com tarifas subsidiadas (de energia elétrica, gás ou telefone) e financiamentos para a compra de casas populares. Até mesmo o acesso à banda larga de internet passou a integrar algumas listas de direitos humanos financiados pelo setor público.
No Brasil, nada menos que 3,5 milhões entre os mais de 26 milhões dos atuais beneficiários da Previdência Social recebem aposentadoria equivalente a um salário mínimo, embora não tenham contribuído para o INSS.
As funções do Estado-providência e o exercício dessas políticas - que, às vezes, não passam de puro assistencialismo e, outras, se desdobram em medidas de distribuição de renda - devem ser entendidos como obrigações públicas dentro do regime dos Estados do bem-estar social (welfare state).
Mas esse avanço civilizatório também produz consequências. Sobrepuja e até inibe velhas iniciativas de benemerência como as antigas atividades vicentinas de atendimento à pobreza.
Bom exemplo de desestímulo produzido pelo Estado-provedor é o que se dá com as Santas Casas de Misericórdia. No passado, reuniam-se dois ou três médicos locais mais o prefeito, o delegado e o vigário e fundavam uma Santa Casa, com recursos de fundação especialmente criada para isso. Agora, o SUS asfixiou essas mobilizações e tais fundações já não recebem mais contribuições particulares. Assim, as Santas Casas entram em prolongada crise agônica, até que a maior parte do seu sustento passe a integrar dotações previstas em orçamentos públicos.
Enfim, por estranho que pareça, em nossos dias, até a esmola passou a ser estatal e a depender de receitas tributárias.
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