domingo, fevereiro 26, 2012

Como levar um rato ao suicídio - ALDO PEREIRA


FOLHA DE SP - 26/02/12


Para infectar gatos, um micróbio ataca o rato e faz o bicho perder o medo; se ele também puder manipular vontades humanas, o livre-arbítrio se torna ilusão?


A propensão a movimentos furtivos confere a ratos e camundongos certa proteção contra predadores, especialmente gatos. Os gatos, também por instinto, prontamente reconhecem indícios visuais e auditivos da presença de roedores. O encontro fatal, contudo, pode ser facilitado se o rato sofrer de toxoplasmose.
Isto porque o Toxoplasma gondii, o protozoário causador da doença, destrói certas células cerebrais, causando alteração de comportamento: substitui o impulso de esquiva pelo de busca do inimigo natural.
Por assim dizer, o micróbio induz o rato a suicídio específico: morte seguida de ingestão por gato.
O "interesse" do micróbio: passar do organismo do rato ao do gato, único ambiente em que pode cumprir a fase de reprodução sexuada de seu complexo ciclo de vida. A prole resultante, talvez milhões de "ovos", emergirá nas fezes do gato. (Parece ação teleológica de espíritos, mas o fenômeno tem plausível explicação darwiniana.)
Dessa complicada história natural, importa considerar sobretudo:
1) Somos todos suscetíveis a infeções por T. gondii? (Sim.)
2) Elas podem afetar o cérebro humano? (Sim.)
3) Podem induzir alterações vitais na personalidade? (Sim, mas o júri de parasitologistas, neurologistas, psiquiatras e outros cientistas ainda qualifica o veredito.)
Há muitas décadas, todo médico sabe que uma mulher grávida portadora de T. gondii pode contagiar o feto e sujeitá-lo assim a afecções encefálicas gravíssimas, até mortais.
Já em adultos normais, os sintomas são geralmente brandos, confundidos com outros mal-estares e tipicamente seguidos de migração do micróbio para o cérebro.
Até anos recentes se acreditava que ele permanecesse inofensivo ali, em "animação suspensa" dentro do cisto que constrói em torno de si. Mas, há uns 20 anos, certo obscuro biólogo tcheco, Jaroslav Flegr, da Universidade Charles, em Praga, começou a suspeitar que o T. gondii hospedado em sua cabeça vinha induzindo alterações patológicas em seu comportamento.
Não era difícil para Flegr convencer os colegas de que estivesse ficando maluco; difícil foi demonstrar que a causa da insanidade fosse o T. gondii.
Hoje, a teoria e a laboriosa pesquisa de Flegr são acolhidas com respeito e interesse em universidades de alto renome, como a de Leeds, na Inglaterra, e as americanas de Stanford, Johns Hopkins, Binghamton e Estadual de Colorado.
Muitos duvidam quando Flegr conjectura que toxoplasmose pode matar mais gente do que malária, embora por meios indiretos, como induzir comportamento imprudente ao volante ou complicar, quando não determinar, esquizofrenia conducente a distúrbios letais.
O caso intriga não apenas cientistas, mas também juristas, mandatários, filósofos e até mesmo teólogos. O fato de um reles micróbio manipular a nossa vontade e a nossa identidade acentua o argumento fatalista e revive crença em destino: a liberdade, especialmente o livre-arbítrio, seria ilusão?

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