sexta-feira, janeiro 27, 2012

Por que alguns malfeitos tornam-se escândalos? - MARCUS ANDRÉ MELO

VALOR ECONÔMICO - 27/01/12

As afinidades eletivas entre corrupção e política não são novidade. Após deparar-se com notícias sobre corrupção, um personagem de Lima Barreto, em "O Único assassinato de Cazuza" (1911) conclui: "Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na Câmara, no Senado, nos Ministérios, até na Presidência da República se alicerça no crime... Que acha você"?

Embora a corrupção pareça ubíqua para muitos, como Cazuza, a questão instigante é por que alguns delitos e malfeitos tornam-se escândalos e outros não. A visão corrente é que estes últimos são construções midiáticas. Decerto a mídia cumpre papel fundamental neste processo, mas a competição política, ao fim e ao cabo, é que será o fator determinante. Em contextos caracterizados por forte hegemonia ou "monopólio político", o padrão mais comum é muita corrupção e pouco escândalo. E isto por três razões. Uma oposição débil não consegue mobilizar recursos políticos efetivamente para converter denúncia em escândalo. Por outro lado, as instituições de controle não são independentes e são manipuladas pelo Executivo. O mesmo acontece com a mídia. A estrutura de incentivos também milita contra "a oferta" de denúncias uma vez que a probabilidade destas surtirem efeito em ambientes pouco competitivos é pequena.

Por outro lado, em ambientes competitivos em que forças políticas equiparam-se, a geração de escândalos torna-se um imperativo de sobrevivência eleitoral. Afinal um escândalo pode "tip the balance" em uma eleição. E assim os incentivos para a geração de escândalos são fortes. Além do mais a probabilidade da denúncia gerar efeitos e serem publicizadas é alta. Como nestes contextos a mídia é mais pluralista e as instituições de controle são mais independentes, estes incentivos tornam-se ainda mais robustos.

É a competição política e não a mídia que explica os escândalos

A competição política influencia não só os incentivos para a denúncia mas também para o acobertamento dos escândalos. Onde existe acirrada competição política, os incentivos para a "oferta" de denúncias são grandes. A probabilidade de defecção estratégica de membros da base de sustentação do governo é grande e por isso mesmo as denúncias costumam ter desdobramentos (processos investigativos, CPIs). Da mesma forma, há mais incentivos por parte das instituições de "checks and balances" e auditorias para ir a fundo nas suas diligências e auditorias porque os custos políticos de interferência do executivo sobre as mesmas são altos. Os membros destas instituições têm também maior probabilidade de terem sido indicados por forças políticas distintas devido a alternância no poder. Mas por outro lado, os partidos e grupos políticos que dão sustentação à coalizão de governo tendem a unir forças para acobertar malfeitos já que estes podem por em risco suas chances políticas.

Em contextos de ampla dominância política por uma coalizão ou partido, o padrão muda radicalmente. Diminuem os incentivos e escopo dos controles sobre o Executivo por parte da oposição. Mas em compensação crescem os incentivos para as denúncias intracoalizão - o "fogo amigo". Isto porque a própria coalizão de governo ou partido já não teme que ele possa resultar em derrota eleitoral. A expectativa para seus membros é que o "fogo amigo" resulte em mera reacomodação na alocação de ministérios e cargos no Executivo.

Nos países parlamentaristas, onde há fusão dos Poderes Executivo e Legislativo, o Legislativo vê sua capacidade de fiscalizar e controlar o Poder Executivo diminuir. No caso de investigação pelo Legislativo de denúncia de corrupção este estaria dando um tiro no pé. O contrário ocorre sob o presidencialismo, porque os incentivos de sobrevivência eleitoral do Poder Executivo e dos parlamentares são distintos. Por isso, como conclui Kaare Strom, há mais "accountability" e responsabilização no regime presidencialista do que no parlamentarista. Incentivos institucionais para o "acobertamento" e padrão de competição política explicam assim a efetividade dos controles sobre governos, e o saldo é indeterminado. No chamado presidencialismo multipartidário, o modelo constitucional adotado no Brasil, a lógica potencial que prevalece é semelhante à existente no parlamentarismo, a do conluio institucional. Mas quando os "custos reputacionais" dos escândalos tornam-se proibitivamente altos para o Executivo, o conluio se debilita.

Atualmente a base de sustentação parlamentar do governo é avassaladora e não é à toa que o padrão de denúncias tem sido marcado mais pelo "fogo amigo" do que pela artilharia da oposição. (modelo que poderia ser chamado de "argentino": os escândalos são produzidos internamente pela disputa entre facções peronistas rivais).

A despeito do protagonismo da mídia nas denúncias, a fritura de ocupantes de ministérios no governo Dilma foi alimentada pelos partidos da base. Mas o padrão competitivo recente do sistema político brasileiro engendrou instituições robustas. A mídia é bastante autônoma e as instituições de controle mantêm-se relativamente independentes, embora crescentemente sob ameaça. Mas a dominância governista já começou a fazer mal. E o padrão argentino de "fogo amigo" é indicador de uma certa degeneração institucional.

O inimigo do controle sobre governos é a falta de competição política (e o consequente enfraquecimento das instituições de "checks and balances"). No limite, o "efeito-competição" tende a superar o "efeito-acobertamento", e mais episódios de corrupção se converterão em escândalo. Há um limiar quando o controle externo passa a andar sozinho. Mas ainda falta muito para ele ser alcançado.

Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University, é "Fellow" da John Simon Guggenheim Foundation

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