quarta-feira, janeiro 18, 2012

Cano alto - ANTONIO PRATA

FOLHA DE SP - 18/01/12


Na 7ª série, troquei com um colega um relógio Casio, em bom estado, por um Pony de cano alto, em farrapos



Caminhando os 50 metros do carro ao restaurante, me senti estranhamente calmo: ia tranquilo, pisando firme, os braços não sobravam, tais quais duas trombas inúteis a balançar ao lado do corpo, como tantas vezes acontece. Entrei na cantina de cabeça erguida, sentei-me próximo à janela e foi só então, ao cruzar as pernas, que descobri a origem de minha segurança: os tênis de cano alto.

Passei a infância inteira de galochas. Fizesse chuva ou sol: moletom e galochas, shorts e galochas, sunga e galochas. Botas, afinal, eram a única peça da indumentária de super-herói que você podia vestir sem estar fantasiado e calçá-las era como ter consigo o cinto de utilidades do Batman, o escudo do Capitão América ou, escondida num frasco, para qualquer eventualidade, a poção mágica de Panoramix. Talvez venha daí a conexão entre a firmeza dos tornozelos e a contenteza do espírito.

Talvez tenha surgido mais tarde. No final dos anos 80, houve uma revolução no estilo dos tênis. Os Kichutes, Bambas e All Stars de lona foram solapados por rechonchudos Nikes, Reeboks ou Ponys. Os modelos mais legais, de cano alto, eram feitos para se jogar basquete; aos meus olhos, contudo, pareciam ter sido fabricados para andar por Marte, com traje espacial. Por anos cobicei um daqueles pares, mas meus pais não me davam. Até que, na sétima série, troquei com um colega de classe um relógio Casio, em bom estado, por um Pony de cano alto, em farrapos -o pé esquerdo todo remendado com silver tape, partes do couro retocadas com Liquid Paper...

À boca miúda, correu pela 7ªB a opinião de que eu havia feito um péssimo negócio. Eu sabia que, financeiramente, não havia sido uma boa troca, mas quem liga para finanças na sétima série? Ainda mais com um Pony de cano alto nos pés? Aquele tênis trazia de volta a fortaleza das galochas e, ao mesmo tempo, me oferecia o ticket de entrada para uma nova fase: era minha primeira peça da indumentária adolescente. Foi seu cano alto, aliás, que sustentou as pernas bambas, no ano seguinte, quando, numa escada pouco iluminada da escola, durante o recreio, dei meu primeiro beijo.

Então veio o colegial: Sex Pistols, Mano Brown e Drummond fizeram-me ver nos tênis importados a submissão ao materialismo e ao imperialismo ianque. Mesmo que, de lá pra cá, eu tenha me rendido em muitas áreas ao materialismo e ao imperialismo ianque, passaram-se 20 anos sem que amarrasse um cadarço acima do tornozelo.

No último domingo, contudo, estava no shopping trocando um presente de Natal e vi numa vitrine o par de Vans. Trata-se de um tênis de skatista, de cano alto, que desejei imensamente entre os 10 e os 14 anos. Não é espalhafatoso como os modelos de basquete, mas tampouco tem a neutralidade pseudoarrojada de um sapatênis. Ainda não sei se usá-los remete-me à infância ou se é o primeiro passo no caminho sem volta de juvenilização do vestuário (vírus que se manifesta principalmente em homens, em torno dos 35 anos). O que sei é que, com eles nos pés, vou tranquilo, piso com firmeza e os braços não sobram, tais quais duas trombas inúteis, a balançar ao lado do corpo. Cano alto. Que saudades.

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