Viciados na bondade de estranhos
O blog milionário de Bethânia
Revista Veja
Ou, mais precisamente, na caridade do contribuinte: os artistas consagrados que pedem
dinheiro público estão dentro da lei, mas fora dos limites da ética
Maria Bethânia e Gal Costa são duas das maiores intérpretes brasileiras. Nando Reis,
Ex-integrante do grupo de rock Titãs, teve suas composições-solo gravadas por cantoras
como Marisa Monte e Cássia Eller. O grupo Tchakabum não tem esse tipo de prestígio
(Kleber Bambam, vencedor do primeiro Big Brother, era louco por suas canções), mas
vende discos e lota shows. Nas últimas semanas, entretanto, esses artistas estiveram em
evidência não por suas eventuais qualidades, e sim pela indignação que provocaram quando
veio a público que estão entre os vários contemplados pelo Ministério da Cultura com
autorização para captar verbas acima de 1 milhão de reais por meio dos benefícios fiscais
previstos na Lei Rouanet (veja o quadro abaixo). Do pomo de vista legal. nada impede
que artistas consagrados busquem esse recurso. Nem que o Minc aprove seus projetos;
todos os processos citados correram dentro do escopo da lei. A questão que se apresenta é outra se é ético que os artistas peçam o que na prática não passa de subsídio estatal para sua carreira, e legítimo que o Minc acolha propostas como a que beneficia Maria Bethânia, para um blog em que a cada dia será postado um novo vídeo com ela declamando poesia. Até prova em contrário, a única coisa que o pÚblico de Bethânia espera dela é que cante. E esse público, aliás, é apenas uma fração de um conjunto bem maior, o dos contribuintes que a financiarão compulsória e involuntariam ente – muitos dos quais não têm interesse em ouvi-Ia cantar, muito menos declamar. Isso é, como bem definiu o músico Zé Rodrix, "usar o dinheiro de muitos para financiar a aventura pessoal de poucos".
A Lei Rouanet foi criada em dezembro de 1991 para estimular as empresas do país a
investir na área cultural e retirar parte desse ônus do estado. Como contrapartida, ela
permite abater até 4% do imposto devido. Ou seja, o dinheiro não sai dos cofres do
Ministério da Cultura - mas é, sim, dinheiro público que poderia ser aplicado tanto em
projetos culturais merecedores como em saúde, educação ou qualquer outro setor. Os
nomes mais conhecidos costumam sair ganhando com a Lei Rouanet porque, além do
desconto no Fisco, a vantagem para as empresas está em associar sua marca a um artista
que lhes dê projeção. Muito mais dificuldade encontram os projetos de música erudita e de
artistas iniciantes ou experimentais. De instrumento para movimentar a cultura, então, a Lei
Rouanet muitas vezes é brandida como ferramenta para o assistencialismo de privilegiados.
Poderia ser pior: certas correntes usam essas distorções na aplicação da lei como argumento
para pregar sua reformulação - segundo a qual o Minc seria empossado como distribuidor
de verbas, o que transformaria a pasta naquele vergonhoso balcão de negócios que era, por
exemplo, a extinta Embrafilme.
VEJA teve acesso aos requerimentos dos quatro artistas citados, bem como aos de Erasmo
Carlos, Zizi Possi e da filha de Elis Regina. São de causar espanto os valores pedidos por
alguns deles. Maria Bethânia, por exemplo, achou que merecia ganhar 600 000 reais para
ser diretora artística de seu próprio projeto, e pretendia remunerar o moderador do blog
com rendimentos finais de 120000 reais. Ga1 Costa, que vai realizar 25 ensaios e oito
shows para um tributo ao compositor Tom Jobim (já revisitado por ela em um passado
não tão distante), classificou como "populares" ingressos no valor de 50 a 100 reais. Já o
Tchakabum, em sua cruzada para divulgar o gênero neopagode, vai gastar 162000 reais em
cada um de seus dez shows gratuitos nas praias do Rio. Se não barraram essa festa toda,
os avaliadores do MinC ao menos corrigiram alguns valores. Os 600000 reais de Maria
Bethânia viraram 302500 e os 120000 do moderador do blog, 72000. Os ingressos de Gal
Costa baixaram para a faixa de 30 a 60 reais - que continua nada tendo de popular.
Em países como os Estados Unidos, é comum que os artistas retribuam um pouco do
carinho recebido nos primeiros anos de carreira. O ator Brad Pitt e o saxofonista Branford
Marsalis ajudam na construção de casas para os desabrigados em Nova Orleans. O ator
Jack Black, famoso por suas comédias escatológicas, contribui financeiramente com a
Filarmônica de Los Angeles. Tony Bennett, talvez o último grande cantor de jazz, criou
programas musicais em sete escolas de Nova York e fundou a Escola de Artes Frank
Sinarta na mesma cidade. Parti LuPone, artista que reina nos palcos da Broadway mas está
longe de ser milionária, é uma das principais colaboradoras da Juilliard School, emérita
formadora de músicos e atores do primeiro time. O artista brasileiro, por sua vez, sempre
dependeu da bondade de estranhos. Foi mimado nos tempos gordos da indústria fonográfica, ganhou fama e dinheiro com shows e ocasionais vendas de discos. E hoje, quando as transformações no mercado não o favorecem, acha que o estado lhe deve o favor de bancar seus sonhos. Mesmo que a cortesia seja feita com chapéu alheio - o de seu público. Em meio a essa guerra de vaidades e vontades, o Tchakabum até que faz menos feio: seus shows pelo menos serão gratuitos. O prejuízo do contribuinte, no caso, se concentrará mais no aparelho auditivo que no bolso.