quarta-feira, dezembro 28, 2011
Pouca roupa me lavavas - MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 28/12/11
Com arte, os argentinos fingem uma indiferença que, de nossa parte, temos como segunda natureza
Uma das regras da boa literatura é não dizer tudo de uma vez. Importa que o leitor entenda por si mesmo o que se deixou apenas sugerido.
A razão para isso não está apenas na vontade de dificultar as coisas. É que sentidos ocultos podem ser imaginados, além daquele mais óbvio que o escritor poderia transmitir. Os argentinos parecem ter especial predileção pela forma indireta de dizer as coisas.
No final de um conto de Jorge Luís Borges, só sabemos que houve um assassinato porque o narrador, sem mover um músculo, diz ter examinado o seu próprio punhal, "e nele não tinha ficado o menor rastro de sangue". Não quis confessar que havia matado seu inimigo a facadas.
Podemos pensar que estivesse apenas evitando ser incriminado. Mas é também uma questão de modéstia; não quer se gabar do feito. Ou, quem sabe, não matou ninguém, mas quis dar a impressão de ser perigoso.
Num espírito diferente, um grupo de humoristas portenhos, Les Luthiers, tem um disco (são ótimos instrumentistas também) com paródias de vários gêneros musicais.
Compuseram um tango no qual, em vez de lamentar a infidelidade da mulher, o cantor extravasa as mágoas que tem da própria mãe.
"Por que fuistes, mamá?" põe em cena um típico malandro, que, como sempre, se considera impecável em seu comportamento.
A mãe dele não tinha motivos para abandonar o lar. Afinal, sua vida era boa. "Pouca roupa me lavavas", diz o malandro. De modo indireto, muita coisa é dita nesse verso.
Primeiro, que a mãe cuidava, naturalmente, das tarefas de casa. Depois, que ela não podia reclamar tanto assim do trabalho; não tinha de lavar muita roupa.
Talvez porque, sendo pobre, nosso herói não tivesse mesmo muitas roupas. Ou porque seus hábitos de higiene não fossem muito rigorosos. Quem sabe exista uma acusação implícita: a mãe era mais desleixada do que seria de desejar.
Note-se, por fim, que o rapaz abandonado não diz que dava presentes à mãe, que era carinhoso com ela. Sua falta de consideração é tão grande que ele só se lembra de não ter dado trabalho demais à pobre senhora. Na queixa do abandonado, percebe-se assim um bocado de ingratidão. Quanto mais o pilantra diz ter sido injusta a atitude da mãe, mais percebemos que era insuportável conviver com ele.
Algumas figuras da retórica clássica resumem esse jeito indireto de falar. Podemos pensar na elipse (uma palavra que se omite) ou na lítotes, quando se afirma uma coisa negando o seu contrário. Em vez de dizer, por exemplo, que fulano é um ladrão, limito-me a observar que fulano não é a pessoa mais honesta do mundo.
Escrevo essas coisas porque estou lendo um livro de contos do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977), publicada há algum tempo pela Editora 34.
"Essa Mulher", o conto que dá título à coletânea, usa com brilho essa técnica do subentendido. O nome da mulher em questão nunca é pronunciado pelos protagonistas.
Percebe-se, entretanto, que se trata de Evita Perón (1919-1952), ou melhor, do seu cadáver, roubado misteriosamente depois de um golpe de direita. "Essa mulher é minha", diz o militar do conto -e uma obscura relação entre desejo sexual, necrofilia, vontade de poder político e impulso repressivo se sugere.
Em outros contos, a violência e a canalhice são antes indicadas do que explícitas. Não por uma questão de pudor, mas porque estão de tal modo entranhadas no cotidiano dos personagens que seria irrealista se o narrador se espantasse com o acontecido.
É uma lição a ser adotada pelos escritores brasileiros que, a começar por Rubem Fonseca, acham-se especialmente corajosos quando denunciam a criminalidade da periferia. Muitas vezes parecem querer chocar o leitor, mas eles próprios não disfarçam o olhar arregalado diante do que narram.
Penso num motivo para as elipses e os eufemismos argentinos. Terror, política, mágoas de amor se vivem, por lá, com uma dose de paixão e seriedade que não possuímos.
A voltagem é tão intensa que filtros e isolamentos se tornam imprescindíveis. Por aqui, talvez tenhamos de carregar o texto apenas para compensar certa frieza, certa mornidão interior. Com arte, os argentinos fingem uma indiferença que, de nossa parte, temos como segunda natureza -e a sanguinolenta literatura do Brasil de hoje luta, na verdade, contra essa deficiência essencial.
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