domingo, dezembro 18, 2011

Os presos políticos na era bolivariana - MARC MARGOLIS


O Estado de S. Paulo - 18/12/11


O governo Evo Morales transforma ato lícito em corrupção e zelo administrativo em atentado contra povo e nação para pôr os inimigos na prisão.



Pergunte às autoridades bolivianas sobre os presos políticos e prepare-se para a resposta padrão: "No hay". Assim afirma o governo de Evo Morales, líder eleito e reeleito por maiorias expressivas, em eleições democráticas e abertas. Portanto, todos os detentos bolivianos são apenas presos comuns e ponto final.

Mas a democracia na era de Evo, franqueada ao "socialismo do século 21", do pacto bolivariano de Hugo Chávez, sempre foi um pouco diferente. Considere o caso do ex-presidente do Banco Central, Juan Antonio Morales.

Morales, que não tem parentesco com o presidente, está em regime de prisão domiciliar. Desde 7 de setembro, só sai de sua casa em La Paz com ordem expressa do juiz. Seu delito? Bem, aí o enredo se perde nas brumas dos Andes. Mas, em suas peculiares entrelinhas, surge o desenho mais fiel e preocupante da democracia disfuncional bolivariana. Primeiro, porém, uma nota biográfica.

Juan Antonio Morales presidiu o Banco Central da Bolívia de 1995 a 2006. Tornou-se não só decano dos banqueiros centrais da América Latina, senão um pilar de estabilidade e lisura em um país desacostumado a ambas. Em seus 11 anos à frente do BC, viu nove ministros da Fazenda da Bolívia.

Armínio Fraga o considera um profissional "muito respeitado". Entre os bolivianos, é tido como "o economista mais importante do país". Foi protagonista da estabilidade econômica da Bolívia, outrora país recordista em hiperinflação na América Latina.

Nos anos 80, paguei a diária de hotel com uma maleta de pesos e já vi camponeses no Chapare pesando tijolos de cédulas na balança, em vez de contá-los. Ao final do mandato de Juan Antonio no BC, a inflação boliviana caíra para 5% ao ano. Pelo conjunto da obra, em 2005, foi indicado banqueiro central do ano pela Emerging Markets, respeitada publicação que circula nas cúpulas do Banco Central e do Fundo Monetário Internacional.

Agora ao prontuário. Contra o ex-servidor Morales, não há até o momento nenhuma ação penal formal, apenas a vaga e danosa acusação de corrupção, pois teria embolsado um abono "ilegal" de 6,4 mil bolivianos (US$ 1 mil à época) por mês acima do salário base de 30 mil bolivianos (US$ 5 mil). De irregular, não tinha nada. Na inflacionária década de 90, o abono era a arma que o governo dispunha para manter seus melhores quadros, sempre tentados pelos salários da iniciativa privada. Mas, com a nova Lei Quiroga Santa Cruz, que passou em 2010 pelo rolo compressor de Evo, o abono legal virou sinônimo de ganância e Juan Antonio Morales, de corrupto.

Como os valores supostamente surrupiados são pífios, ultimamente a fiscalização de Evo também acrescentou outra acusação mais grave, desenterrando um caso há muito já solucionado. Foi o empréstimo do BC ao Citibank para o resgate do Banco Hipotecário boliviano. A operação foi um sucesso. O banco foi salvo e o empréstimo, de US$ 43 milhões, quitado, quatro anos antes do prazo. Mas, pelo retrovisor de Evo, foi trambique, um crime de "lesa-pátria".

Eis a alquimia invertida bolivariana. Transforma ato lícito em corrupção e zelo administrativo em atentado contra povo e nação. Como seriam crimes contra o Estado, jamais prescrevem, dando aos mandatários superpoderes de reinventar o passado e converter desafetos em criminosos. Tudo com o verniz da Justiça, instituição tocada ao sabor do Executivo.

Hoje, quatro ex-presidentes respondem a ações penais. Leopoldo Fernández, ex-governador de Pando, está há três anos na prisão, embora jamais tenha sido condenado a crime algum. Idem para o alto comando das Forças Armadas do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada.

Em comum com Juan Antonio Morales, eles cometeram dois erros imperdoáveis. Todos serviram governos anteriores ao de Evo e possuem ideias próprias, o suficiente para os transformarem em inimigos de Evo e, portanto, do Estado. Tudo em um país sem presos políticos.

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