quarta-feira, dezembro 21, 2011
Os pobres também sofrem - MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 21/12/11
Não há como ignorar a parcela de truque, de fórmula que está por trás desse documentário
Num prédio modesto em Copacabana, o morador solitário e cinquentão liga o aparelho de som. Começa uma música de Frank Sinatra, "My Way", que ele repete de cor.
No final, ele está chorando, não propriamente de tristeza, mas no que parece ser a pura força de sua convicção. Convicção de quem ele próprio é, força íntima de conseguir transformar seu abandono em independência. Celebra, como quem escolheu voluntariamente o "seu caminho", algo que, aos olhos da plateia, pode bem ser interpretado como uma total derrota na vida.
Quem assistiu a "Edifício Master", filme de 2002, não se esquece dessa cena nem desse personagem. Eduardo Coutinho resolveu ampliar esse momento em seu novo documentário, "As Canções".
Pessoas em sua maioria de classe baixa se sucedem diante da câmera, sentadas numa poltrona preta, à frente de um fundo preto, e cantam, sem acompanhamento, uma música que as tenha marcado durante a vida. Gostei de "As Canções", como sempre gosto dos documentários do autor, mas fico sem resposta diante das críticas que esse filme pode suscitar.
Será que Eduardo Coutinho está recaindo, apenas, numa fórmula que já deu certo? Difícil dizer que não.
A atenção ao contexto político, que dava tanta profundidade a seu "Cabra Marcado para Morrer" (1985), desapareceu, e cede lugar a certo jogo com o sentimentalismo.
Sentimentalismo disfarçado, porque a filmagem elimina qualquer retórica. Exceto uma ou outra aproximação do rosto do entrevistado, tudo se pretende frio e objetivo por parte do diretor.
A câmera mal se mexe. Os silêncios entre uma frase e outra são preservados. A estratégia de Coutinho está precisamente em não cortar a cena, nos momentos em que outro diretor se interessaria em acelerar a ação.
Ele espera para dar o bote, por assim dizer. Ou melhor, até que o próprio entrevistado desabe diante de nós.
"Quanto tempo esse sujeito aguenta aí, sem cair no choro?". A pergunta está implícita na cabeça do espectador, e, perdoem-me, é a mesma que se faria se estivéssemos assistindo a uma sessão de tortura.
Claro que Eduardo Coutinho está longe de insistir no sensacionalismo dos noticiários de televisão, que se esbaldam ao mostrar o choro de quem perdeu a casa num desabamento.
Só que sua estética leva a outro extremo. O despojamento vai beirando uma espécie de frieza e torna-se quase sádico.
A vozinha em "off" do diretor, sempre respeitosa, não revela nenhuma curiosidade maligna. Pede apenas que o entrevistado não fuja do assunto. "Então, naquele momento, a senhora achou que..."
A mulher abandonada (há muitas nesse filme) assente. "É, eu achei que..." Pronto! Todo o esforço que fazia (o de mostrar-se íntegra, vencedora, tendo superado a decepção amorosa) se despedaça, e a canção de Roberto Carlos, o bolero antigo ou a letra de Jorge Ben Jor liberam todo o seu poder radioativo.
Não há como ignorar a parcela de truque, de fórmula que está por trás desse documentário. Mesmo assim, não estou entre os que se irritam.
Como outros filmes de Eduardo Coutinho, "As Canções" tem um efeito pedagógico sobre meus próprios preconceitos. Por mais que, em tese, eu tenha a simpatia de todo universitário de esquerda com as tristezas dos mais pobres, o desprezo intelectual não é fácil de se abandonar, e minha conversa com quem não pertence à minha classe social é quase nula.
Nesses depoimentos de "gente humilde", para lembrar outra canção de Chico Buarque, vejo duas coisas que são novidade para mim. De um lado, o poder literário desta ou daquela frase que sai espontânea do entrevistado, com uma eloquência que nasce do sofrimento.
De outro lado, a inteligência comum a todo ser humano, instruído ou não, para lidar com a própria vida. Entre a loucura e o bom senso, do impulso assassino e apaixonado à resignação normal, toda pessoa vai tocando a vida, e se sai com razoável dignidade das armadilhas que aprontou para si mesma.
Uma antiga novela dizia que "os ricos também choram". Numa fase da economia em que a classe C ascende ao mundo do consumo e da educação, Eduardo Coutinho parece mostrar que "os pobres também sofrem" -mesmo que não seja por causa da pobreza, e mesmo quando não são tão pobres assim.
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