sábado, dezembro 24, 2011
Os monstros da Coreia do Norte - ÁLVARO PEREIRA JUNIOR
FOLHA DE SP - 24/12/11
Segundo essa distorção da realidade, povos de todo o planeta admiram a prosperidade de Pyongyang
Se tiver um tempo livre neste Natal, procure no YouTube: Pulgasari. E prepare-se para ver algumas das cenas mais insanas da história do cinema de horror.
"Pulgasari" é o nome de um filme de ficção científica norte-coreano, de 1985, feito sob instruções diretas de Kim Jong-il, na época ainda um aspirante à sucessão do pai, o déspota Kim Il-sung.
Como 100% da produção cinematográfica da Coreia do Norte, o longa enaltece o regime. Pulgasari é um boneco de arroz que, ao entrar em contato com sangue humano, passa a crescer descontroladamente, e a se alimentar de ferro. Antes que o monstro estraçalhe de vez Pyongyang, o Exército entra em ação e acaba com ele.
Segundo especialistas em cinema norte-coreano (sim, eles existem), "Pulgasari" simboliza o caráter monstruoso e insaciável do capitalismo que, não fosse pela brava resistência da dinastia Kim, tomaria conta do mundo.
O enredo não é grande coisa, mas os bastidores são fenomenais. O filme foi dirigido pelo sul-coreano Shin Sang-ok. Kim Jong-il, ditador morto esta semana, era fã de seu trabalho. Tão fã que mandou sequestrá-lo em 1977, quando Shin estava de passagem por Hong Kong.
Em um primeiro momento, Shin passou cinco meses numa pensão na capital, Pyongyang, sem que ninguém explicasse nada. Tentou escapar e foi preso em uma solitária por três meses. Ao tentar fugir de novo, acabou transferido para um campo de prisioneiros políticos, onde vegetou por inacreditáveis quatro anos.
Um dia, do nada, foi convidado para um jantar com o próprio Kim Jong-il. Ao chegar, deparou-se com sua ex-mulher, a atriz Choi Eun-hee, que tinha sido sequestrada um poucos antes dele, e cujo paradeiro era ignorado desde então.
O caso é contado em detalhes no livro "Kim Jong-il: North Korea's Dear Leader", do jornalista americano Michael Breen.
O querido líder julgava-se um esteta, a porto de ter escrito o tratado "Sobre a Arte do Cinema". Trecho: "Vocês, os diretores de cinema, devem revolucionar-se completamente, e lutar devotadamente pelo Partido e pela revolução, pela vitória da causa do socialismo e do comunismo. Essa é a maneira de se mostrarem dignos da consideração do Partido, e da confiança que ele demonstra em vocês".
A versão final para o inglês de "Sobre a Arte do Cinema" foi feita pelo britânico Michael Harrold, que trabalhou nada menos que seis anos, a partir de 1987, como revisor de inglês para o governo de Pyongyang. Na volta, Harrold escreveu um livro revelador: "Comrades and Strangers: Behind the Closed Doors of North Korea".
Foi parar ali de alegre. Tinha acabado de se formar na Universidade de Leeds quando viu um anúncio de "precisa-se de tradutor". Inscreveu-se sem saber nada sobre o regime. Depois de um ano e incontáveis confusões com a burocracia norte-coreana, desembarcou em Pyongyang.
De cara, uma gafe. Quando os dois oficiais que o esperavam no aeroporto perguntaram o que ele conhecia do país, respondeu: "Até outro dia, não sabia nem onde ficava no mapa".
Pela reação negativa dos anfitriões, Harrold aprendeu aí sua primeira e mais importante lição: a dinastia Kim erigiu um universo paralelo em que a Coreia do Norte é o centro do mundo.
Segundo essa distorção da realidade, povos de todo o planeta admiram a prosperidade e a perfeição do sistema político de Pyongyang.
Cada frase emitida por Kim Il-sung ou Kim Jong-il é aguardada ansiosamente em todo o mundo. Os EUA só têm um objetivo: destruir a Coreia do Norte. E a Coreia do Sul é o inferno na Terra.
Como Harrold suportou seis anos nesse esquema, o livro não explica. Mesmo assim, é uma peça valiosa, o relato de um estrangeiro que viveu sob um regime totalitarista, paranoico e mentiroso, talvez o mais opressivo de toda a história contemporânea. Harrold descreve a solidão da vida dos expatriados na capital, as avenidas amplas e desertas, os bares quase vazios, a pequena comunidade de estrangeiros solapados pelo tédio.
Ele não chega a se posicionar politicamente, e não demonstra grande remorso por ter atuado tanto tempo na máquina de propaganda de um regime tão repressor.
Ler o livro desse inglês e assistir a "Pulgasari" são maneiras de entender um pouco mais os monstros que assombram a Coreia do Norte.
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