quarta-feira, novembro 23, 2011

A USP e a corrosão do caráter - ROBERTO ROMANO


O ESTADÃO - 23/11/11

Acadêmicos brasileiros pouco afeitos à cultura imaginam que noções éticas, morais, científicas surgem apenas em textos considerados relevantes nas seitas universitárias. A preguiça e a pressa na publicação,unidas,logo brotam juízos "definitivos" sobre algum campo do pensamento.

Assim ocorre com o tema antigo sobre a presença ou ausência de caráter nas pessoas.

Os supostos pesquisadores consideram que o conceito de uma corrupção do caráter aparece com o sociólogo norte americano Richard Sennett.

Esse teórico, é certo, muito ajuda a entender a vida moderna.Seu livro sobre o caráter corrompido integra uma série de textos que narram, com olhar clínico, as mudanças e o estilhaçamento de valores na sociedade urbana ocidental.Coma flexibilização do trabalho e a insegurança resultante, temos a massa dos que perderam a confiança nos governos e nos mercados. Outra obra de Sennett indica a crise da sociedade e do Estado.

Trata-se do monumental O Declínio do Homem Público. Ali, ele demonstra o quanto as formas do Estado foram enfraquecidas, após o século 18,em proveito das "intimidades tirânicas", os movimentos que prometem às minorias a defesa de seus direitos sem passar pelos mecanismos do poder público.

Baseando-se na "identidade" assumida pelos indivíduos, tais movimentos assumem formas repressivas das quais é quase impossível escapar. Antes de ser um cidadão, o sujeito pertenceria à sua "comunidade", cujas causas importam mais do que as coletivas. A primeira vítima da corrosão do caráter é a vida pública.

Movimentos como os descritos por Sennett conduzem milhões às ruas para exercer pressão sobre a sociedade e o Estado.

Mas pouco ou nada fazem diante de descalabros ocorridos na economia, no Judiciário, no Executivo, nos Parlamentos. A identidade maior deixa de ser a cidadania e se transfere para instâncias que defendem particularidades.

Sennett respeita os referidos modelos intimistas, mas também mostra o quanto sua pauta é unilateral e autoritária, tiranizando seus adeptos.A corrosão do caráter é potencializada quando os grupos e indivíduos assumem o perfil da militância.

O militante padrão, por mimetismo, sacrifica normas éticas,sociais e política sem proveito de seu movimento, visto por ele como a fonte última dos valores. Todos os demais âmbitos seriam movidos por interesses escusos. A maior parte do material histórico e sociológico usado por Sennett vem dos EUA e da Europa.

No Brasil, temos um campo mais complexo. Aqui, longe de permanecerem distantes e hostis aos poderes públicos, lutando contra eles na concorrência para dominar indivíduos e grupos, movimentos sociais mantêm excelentes tratos com os governos e Parlamentos. Eles sabem aplicar ventosas nos cofres estatais (as ONGs...) de modo a expandir suas forças, mas guardam a retórica contrária ao Estado.

Abusca de verbas põe a militância ao dispor de partidos políticos hegemônicos. O militante exerce seu fervor de tal modo que, em pouco tempo, pratica o que suas doutrinas condenavam ou condenam.O militante, cujo caráter foi corroído, julga que os interesses sociais alheios à sua pauta são "burgueses", "abstratos", "conservadores".

Eles e imagina autorizado a manter em lugares estratégicos oligarcas exímios na arte de roubar os cofres públicos. Na superfície, movimentos como a UNE (e suas subsidiárias) arvoram palavras de esquerda.

Mas dão suporte às mais retrógradas forças políticas.

Líderes estudantis que ontem lutavam contra a corrupção, ao subirem ao poder de Estado, guardam excelentes relações com oligarcas truculentos.

Entre as manifestações contra Fernando Collor e o realismo de hoje não existiria, para a esquerda oficial, nenhum elo.

Os valores antes repetidos qual ladainhas são ditos "bravatas" pelos que aderiram à razão de Estado corrompida. A militância é processo corrosivo a ser notado em todas as profissões.Em todos os setores da vida social e política ela dissolve valores efetivos em prol dos dirigentes demagógicos e de suas aliança sem proveito próprio.

A que assistimos na USP nos últimos dias? Lutas contra o arbítrio autoritário dos oligarcas? Denúncias de corrupção política (que lesa milhões de brasileiros em termos de educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia)? Batalhas contra a falta de democracia nos grandes partidos, nos quais os dirigentes são donos das alianças, das candidaturas, dos cofres, sem ouvir as bases? Movimentos contra o privilégio de foro,algo que faz de nosso Estado um absolutismo contrário à República? A pauta dos militantes, professores e alunos é alienada em todos os sentidos, da marijuana ao populismo rasteiro.

Militantes fazem sua revolução em escala micrológica contra o reitor, mas os dirigentes nacionais do movimento estudantil negociam apoio aos donos do poder, os verdadeiros soberanos.

Aviso aos bajuladores do petismo: a noção de caráter é velha como o saber humano e foi estudada, sobretudo, por um pensador "burguês", Immanuel Kant.

Para ele, o caráter é "marca distintiva do ser humano como racional, dotado de liberdade". O caráter"indica o que o ser humano está preparado para fazer a si mesmo". Dentre as técnicas para a corrosão do caráter, as drogas são as piores.

É irresponsabilidade ética afirmar que elas não prejudicam os usuários ou "ajudam a melhorar a imaginação nas artes e nas ciências".A leitura de pesquisas como a de Alba Zaluar,sobre a indústria das drogas, traria prudência aos seus apolo getas nos câmpus.Militantes sempre ignoram e combatem a liberdade e a dignidade alheias, basta ver as multidões que apoiaram tiranias modernas, do fascismo ao stalinismo.

Hoje, na USP, a militância aposenta a busca de "mudar o mundo".

Sobramos coquetéis Molotov para a defesa do nada, da irrelevância absoluta, da morte.

FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE "O CALDEIRÃO DE MEDEIA" (PERSPECTIVA)

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