sexta-feira, novembro 25, 2011

Tão down - ARTHUR DAPIEVE


O GLOBO - 25/11/11


 lcione Araújo escreveu uma peça ambientada na última noite do Real Astória, leio em “Gente Boa”, a coluna.

“Deixa que eu te ame” estreará em 2012 e terá direção de Aderbal Freire e composições de Edu Lobo. Música sempre foi um prato quente no cardápio do restaurante-bar, que tinha um piano. Por suas mesas circulavam - e circular não é figura de linguagem - Cazuza, Angela Ro Ro, Lobão, Alceu Valença. Atualmente, há uma casa homônima à beira da Enseada de Botafogo. O Real Astória da peça, porém, ficava no Leblon. Na esquina de Ataulfo de Paiva com Aristides Espínola.
Do outro lado do sinal da Pizzaria Guanabara.
Na diagonal do velho Diagonal, hoje Diagonal Grill. Localizou? Vinte passos trôpegos Ataulfo abaixo ainda está o Jobi. Esses eram os limites históricos - ou lendários - do Baixo Leblon.
A festa rolava na área desde os anos 1970, mas só cheguei de Copacabana nos anos 80. Para os mais novos pode ser difícil entender a euforia que tomava o pedaço. A ditadura militar agonizava, o sexo era tecnicamente livre, a droga também. Ninguém imaginava que Tancredo Neves morreria antes da posse, cedendo lugar a José Sarney. Ninguém imaginava que a Aids já desembarcara aqui, “a última moda que chegou de Nova York”, na letra sarcástica de Leo Jaime. Ninguém imaginava que o tráfico “romântico” - retratado em “Meu nome não é Johnny”, livro de Guilherme Fiuza que virou filme de Mauro Lima - assumiria a dimensão de calamidade pública e ameaçaria a própria liberdade que celebrávamos em mesas, calçadas e banheiros do Baixo Leblon.
Nós éramos uns iludidos.
Nunca fui um grande frequentador do Real Astória. Nunca fui íntimo o bastante para chamá-lo de “Rá”. Na época, eu me sentia em casa mesmo era no Luna, meio à parte do Baixo, mais adiante, na Ataulfo de Paiva. Outro bar desaparecido, no qual invariavelmente eu traçava o picadinho à Edu Pinto. Ainda assim, talvez tenha uma história típica do Real Astória para contar. Espero que você não esteja tomando café.
O meu causo ocorreu em 1987. Se tenho tanta certeza do ano é porque ela está associada ao lançamento de “La bamba”, de Luis Valdez. O filme era bem mais ou menos. Contava a história de Ritchie Valens, que pegara uma canção tradicional mexicana e a transformara num dos primeiros hits da história do rocknroll, em 1958.
Chicano do Vale de San Fernando, Los Angeles, Valens não viveria muito para aproveitar o sucesso. Morreria em 3 de fevereiro de 1959, aos 17 anos, no mesmo acidente de avião que vitimou o grande Buddy Holly e Big Bopper Richardson.
A data do desastre em Clear Lake, Iowa, passaria a ser conhecida como “o dia em que a música morreu” a partir de 1971, graças a um verso de “American Pie”, de Don McLean.
No Rio, no final dos anos 1970, começo dos 80, o DJ Eládio Sandoval a tocava quase todas as noites no seu programa na antiga Rádio Cidade, a primeira FM moderna do Brasil. Digressiono, digressiono. “La bamba” era estrelado por Lou Diamond Philips, e o seu ponto forte, claro, era a trilha, na qual o grupo Los Lobos reinterpretava a canção-tema, “Donna” e mais meia-dúzia de músicas da curta carreira de Valens (Brian Setzer e Bo Diddley ajudavam a encher o disco).
Para celebrar a estreia do filme e o lançamento do LP, distribuidora e gravadora se associaram na promoção de uma sessão para a imprensa, seguida de farta boca livre, num dos salões do hotel do Posto 6 que então atendia por Rio Palace.
Eu tinha acabado de tomar um baita pé na bunda. Bebi todo o uísque que os garçons me ofereceram. E garçom de coquetel fareja quem está consumindo mais, de modo ou a acabar logo com o estoque de bebida, e poder ir para casa, ou a pendurar uma conta mais pesada nos organizadores. Lembro-me de um colega dizendo para si mesmo “um homem deve saber a hora de parar”, girar nos calcanhares e ir embora sem se despedir de ninguém.
Eu não soube a hora de parar. Naquela noite, eu era um rato.
Dali do coquetel de “La bamba”, eu e alguns amigos do velho “Jornal do Brasil”, Jamari França, Luiz Carlos Mansur, Marcia Fortes, fomos beber no Real Astória. Já cheguei torto ao restaurante-bar, mas, por isso mesmo e por causa da pérfida criatura da ocasião, continuei entornando. Não me lembro o que comemos. Coisa leve não foi. Gosto de acepipes light, tipo provolone à milanesa. Claro que comecei a passar mal, muito mal. Bateu a vontade de chamar o Raul. Na ausência dele, fui de Cazuza, do verso em “Down em mim”, aquele do “banheiro é a igreja de todos os bêbados”.
Dividi o recinto com um sujeito que cheirava pó na pia. Vendo meu estado, ele ficou condoído e me ofereceu uma cafungada “para cortar o porre” ou coisa parecida. Um resquício de lucidez me fez perceber que aquilo não daria certo. Agradeci, declinei a oferta e voltei para a minha mesa com a dignidade possível. O sujeito veio atrás, realmente preocupado, e avisou aos meus amigos que eu precisava de cuidados.
Mansur me botou num táxi. Eu botei os bofes janela afora da Ataulfo até a Miguel Lemos.
No decorrer da vida, o vômito se fez presente em noites quentes de verão, em que eu andava tão down e não conseguia dizer o que desejava para as moças. Qualquer psicanalista de porta de inconsciente mataria essa interpretação dos pesadelos. Desprezado, eu virava um Wittgenstein emético, alterando sua famosa frase contra a tentação metafísica para “sobre o que não se pode falar, deve-se vomitar”.

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