terça-feira, novembro 29, 2011
Ricos e infantis - JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 29/11/11
Avisos sobre as vantagens de usar capacete podem ser importantes, mas a escolha de usá-lo ou não é só minha
UMA DAS vantagens de viver na Europa é que existem dias em que não sabemos se estamos a sonhar ou acordados.
Aconteceu hoje, com o café da manhã: passando os olhos pela imprensa espanhola, descubro que a Direção Geral de Tráfego do país impôs uma multa pesada (30 mil euros) sobre a produtora cinematográfica Tripictures. Motivo da sanção?
É difícil explicá-lo sem correr o risco de o leitor pensar que eu enlouqueci de vez. Mas avanço na mesma: a produtora, responsável pelo filme "Larry Crowne" (uma comédia romântica e medíocre com os insuportáveis Tom Hanks e Julia Roberts), faz a publicidade do filme com uma foto dos dois protagonistas em cima de uma moto. E, horror dos horrores, sem capacete!
A imagem é intolerável para as autoridades espanholas, e o código de trânsito é claríssimo em seu artigo 52: toda a publicidade fílmica que promova "comportamentos de risco" na estrada deve ser banida.
E o desprezo pelo uso de capacete é um desses comportamentos. Segundo as estatísticas apresentadas pelo jornal "El Mundo", não usar capacete faz com que três em cada quatro pessoas morram em acidentes com motos. As lesões cerebrais multiplicam-se por três.
A conclusão é evidente e inquestionável: quem usa capacete aumenta em 20% as hipóteses de sair vivo de um acidente.
Se o leitor está abismado com a notícia, peço-lhe que não esteja. Anos atrás, quando a Europa foi caminhando para essa utopia securitária que regula hoje todos os comportamentos dos seus súditos, eu ainda cometia a imprudência de dizer duas ou três coisas a respeito.
Os meus argumentos começavam e acabavam na liberdade individual de cada um assumir a sua vida -e os seus riscos, porque a vida tem riscos- sem a mão paternalista de um poder político central. Avisos sobre as vantagens de usar capacete podem ser importantes, admito; mas a escolha de usar capacete é minha e só minha.
Os meus interlocutores, que me escutavam com caridosa paciência, concordavam comigo, ou fingiam concordar.
Mas depois acrescentavam que as medidas securitárias que se multiplicavam pela Europa -o uso de cinto de segurança nos automóveis ou de capacete nas motos; a proibição de níveis elevados de sal no pão; a proibição de fumo em bares ou restaurantes; impostos adicionais sobre comidas calóricas etc. etc. -tudo isso era em nome do bem comum, e não apenas uma questão de liberdade individual.
E perguntavam, retoricamente: por que motivo os hospitais públicos devem tratar indivíduos que escolhem vidas de risco? Os recursos são escassos, diziam eles; e, entre um fumante e um não fumante, devemos tratar primeiro quem teve mais cuidado com o próprio corpo.
Por essa altura, eu já não dizia nada. Nem sequer o contra-argumento óbvio de que fumantes ou não fumantes; motoristas sem capacete ou com capacete; gordos ou magros; enfim, doentes ou saudáveis -todos eles pagam impostos e, consequentemente, esperam tratamento pelos serviços que sustentam.
Eu só poderia aceitar que o Estado recusasse tratar dos meus pulmões, do meu fígado ou do meu colesterol se ele recusasse também o meu dinheiro. Mas contra-argumentar para quê?
O pensamento paternalista e securitário não perde tempo com a lógica. Ele é um subproduto de uma sociedade que enriqueceu e atingiu patamares de conforto que convidam ao tédio.
E, com o tédio, vem a irritabilidade própria de quem procura sair dele com novas formas de incomodar a liberdade do vizinho.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre o processo, bastaria olhar para o Brasil. Com uma economia pujante e a integração de milhões de brasileiros nos confortos da classe média, leio nesta Folha que a Assembleia de São Paulo aprovou recentemente uma lei que proíbe a garupa em motos em dias da semana.
Mas não apenas a garupa; capacetes ou coletes com o número da placa da motocicleta pretendem-se igualmente obrigatórios.
Não sei o que irá decidir Geraldo Alckmin sobre essas importantíssimas matérias.
Mas, aqui da Europa, deixo uma mensagem ao senhor governador: por incrível que pareça, é possível enriquecer, sim, sem infantilizar a população ao mesmo tempo. Na Europa já é tarde para isso, mas o Brasil ainda vai a tempo.
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