sexta-feira, novembro 18, 2011

Os 'Gattopardi' - MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE


O ESTADÃO - 18/11/11


Don Fabrizio, príncipe de Salina, é um homem atormentado por suas memórias. Refém de um mundo em transformação, assiste à derrocada da aristocracia sem nenhuma vontade de remediá-la. Sábio e covarde em igual medida, o protagonista de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, imortalizado por Burt Lancaster na obra-prima de Luchino Visconti, é um fatalista. Um fatalista erudito e elegante. Talvez seja isso o que falte aos líderes mundiais: a erudição e a elegância. O empobrecimento dos países maduros, necessário para corrigir os excessos dos anos pré-crise, não deixaria de ser doloroso, mas ao menos dar-se-ia com mais dignidade.

Os países maduros, como Don Fabrizio, assistem a sua própria decadência. A crise aguda bancária, seguida da doença crônica fiscal, entra agora na sua terceira e mais perigosa fase: a da convulsão política, corolário do empobrecimento. Nos EUA, há as hostilidades mal disfarçadas entre republicanos e democratas e o prenúncio de um novo impasse na discussão dos ajustes fiscais para restaurar a higidez fiscal, agora nas mãos do comitê bipartidário instituído em agosto, após a desastrosa discussão sobre a elevação do teto da dívida. Candidatos à presidência inexpressivos, incluindo o ex-eloquente incumbente. Disfuncionalidade política não combina com recuperação econômica.

Na Europa é ainda pior. Numa iniciativa indecorosa e assustadora, a aliança franco-germânica resolveu suspender os processos políticos usuais - a democracia - depois de julgar que estavam ameaçando a moeda única. Interferiram diretamente na soberania de dois países e demoveram seus líderes, que, por pior que fossem, haviam sido eleitos democraticamente. George Papandreou e Silvio Berlusconi foram substituídos por Lucas Papademos, na Grécia, e por Mario Monti, na Itália, ambos com credenciais impecáveis - como economistas. Não têm legitimidade política em seus respectivos países, mas têm a confiança dos demais líderes europeus. O gesto deixa claro como pensam Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. Não são como Don Fabrizio, que, ao ser convidado para ser senador da nova Itália unificada, recusa, afirmando que "é desprovido de ilusões e da capacidade de enganar a si mesmo". Ao contrário, são como o pérfido novo rico Calogero Sèdara, que retruca: "Também não tenho ilusões, mas sou esperto o bastante para criá-las". É isso o que fazem hoje os líderes europeus. Criam ilusão em cima de ilusão de que estão a resolver a crise. E, neste processo, interferem nas boas práticas da governança global.

O que isso significa para as instituições globais, para a economia mundial, sobretudo quando a grande força emergente no palco internacional é um país de incontestável viés autoritário, a China? Essas perguntas não são meramente filosóficas. Afinal, qual o líder mundial hoje que não gostaria de ser chinês? São as escolhas atuais que determinarão a condução da política econômica neste mundo onde os arroubos de imprudência são travestidos de ousadia.

Em muitos aspectos, o Brasil continua bem melhor do que o resto do mundo. A economia está se desacelerando, mas o País ainda deverá exibir uma taxa saudável de crescimento este ano, em meio a tanto desalento mundo afora. A inflação é e continuará a ser um problema, mas são muitos os países que desejariam tê-la, ainda que não o admitam, para sanar os seus problemas de endividamento.

Na política, corrupção, clientelismo e indecência não são atributos brasileiros. Silvio Berlusconi está aí para comprovar que alguns italianos fazem "tão bem", ou "melhor", do que os brasileiros.

Onde, então, está a nossa semelhança com os Gattopardi globais, esses líderes que não conseguem fazer mais do que contemplar a sua própria decadência? Talvez na frase mais famosa do livro, proferida pelo sobrinho de Don Fabrizio, quando insiste em que, "para nada mudar, é preciso que tudo mude". Parece que, ao menos na política econômica, a máxima é verdadeira. E, de quebra, nos garante um lugar de destaque entre os Gattopardi do futuro.

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