quarta-feira, novembro 09, 2011

MARCELO COELHO - Prisões de vidro


Prisões de vidro
MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 09/11/11 

O segurança do banco sabe que nenhuma daquelas velhotas traz uma escopeta entre seus pertences


Quando criança, achava lindas as grandes portas giratórias dos hotéis de luxo. Nos filmes, revolviam lentamente suas pás enormes de cristal, conduzindo as mulheres de casacos de peles até o interior iluminado de salões a perder de vista. Vi a primeira porta giratória de verdade em Buenos Aires, num hotelzão meio decadente da avenida de Mayo. Naquela época, meados de 1970, Buenos Aires era como um filme também.

Como fazia frio, atinei finalmente qual a lógica daquelas portas. Tratava-se de assegurar a circulação das pessoas sem que se perdesse o ar aquecido dentro do edifício. Vi, também, um primeiro sinal de irracionalidade no sistema. Um porteiro engalanado, mas de cabelos brancos e costas curvas, tinha a função de empurrar mecanicamente cada folha da porta de vidro. Parecia o boneco de algum grande relógio de igreja, que contava hóspedes em vez de horas, inclinando-se à passagem de cada brasileiro carregado de compras.

Ainda assim, a coisa tinha seu charme. Foi-se o luxo das portas giratórias. A disseminação do ar-condicionado e dos assaltos fez com que quase toda agência bancária disponha dessa geringonça.

Qualquer ideia de solenidade, de fausto e pompa (os bancos antigamente faziam questão disso) desapareceu num ambiente que é pouco melhor do que uma repartição pública.

Como tudo tem de ser barato e "funcional", a porta giratória moderna é estreita como a de um armário.

Ocupa três vezes menos espaço do que o menor elevador e emperra três vezes mais. Emperra sem aviso, sem alarme. Posso entrar com o máximo cuidado naquela arapuca bancária, meço em milímetros os meus passos para que acompanhem o ritmo impossível de sua evolução.

A porta estaca, entretanto, com violência; quer, claramente, atingir-me na testa. Vejo a fila que se forma atrás de mim. Por sorte, nunca foi das maiores. Não sou de carregar guarda-chuvas, correntinhas, capacetes ou celulares. As mulheres de certa idade são as vítimas preferenciais desse mecanismo de segurança: em geral têm de remexer na bolsa até tirar de lá tudo o que de metal possuam. Forçam novamente a porta, que antipatizou com elas.

Até o segurança do banco sabe que nenhuma daquelas velhotas traz alguma escopeta entre seus pertences.

Mas a porta se diverte; quer que alguma desmaie, talvez, de pé naquela jaula. Ou é a idosa que se desespera e teima em entrar. Não sabe se dá um passo à frente ou um passo para trás, enquanto o segurança do banco mantém toda a calma que ela perdeu. Comigo até que são camaradas. Obviamente, os guardas da minha agência já me conhecem.

Tenho certeza de que, como na triagem da alfândega em Cumbica, eles podem acionar ou não a luz vermelha de acordo com a cara e a bagagem do freguês.

Chegamos aqui ao núcleo do problema. O dispositivo de segurança eletrônico não dispensa o aparato do segurança humano. Duplica-se, como naquele velho hotel de Buenos Aires, o custo da brincadeira. A porta mecânica tem seu porteiro mecânico. Mais de um, com certeza. Estive num consultório médico outro dia (o detalhe é importante, porque portadores de marca-passo, safenados e idosos em geral passam por ali) e passei por inúmeras catracas, humanas ou não.

A máquina do estacionamento manda você apertar um botão. Ao lado, o manobrista recolhe o tíquete. Outro manobrista pega o carro e põe o prisma na capota. Você recebe o papelzinho do prisma e vai à recepção.

A recepcionista pede seu documento e lhe dá um cartão eletrônico. A catraca emperra; o segurança usa o próprio cartão vale-tudo para que você possa entrar. Chegando no consultório, há uma máquina de senhas, que o levará a outra recepcionista, que não é a do médico. Na volta, com sorte, todos os seus tíquetes, senhas e cartões serão recolhidos. Você será restituído à sua condição humana original, a de não ser suspeito de nenhum crime.

A fila dos assaltantes em potencial continua atrás de você. Os homens-máquina prosseguem em seu trabalho, liberando pessoas das máquinas que as prenderam por alguns minutos.
Sentem prazer nisso, mas raiva e tédio também. Sabem que a sua atividade dura o dia inteiro; estão presos ali, congelados naquela geladeira de vidro, por muito mais tempo do que nós.

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