À casa torno
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 06/11/11
Estou de volta a solo pátrio. Novamente pela TAP, que desta vez, apesar de a reserva da volta ter sido feita antes da viagem de ida, me botou em standby na troca de avião em Lisboa e tive problemas não só para embarcar como, depois disso, para conseguir sentar junto a minha mulher. Talvez alguém na companhia haja com isso se vingado do que contei aqui na semana passada, sobre a comida que acabou, no voo de ida. Que é que vou fazer, não é calúnia, é a pura verdade. Havia três opções no menu: lasanha, filé de badejo e cassoulet de carne mas, mas as nossas poltronas eram as últimas e, quando chegou a nossa vez, tanto a lasanha quanto o badejo tinham acabado. Imagino que, se isso acontece com frequência, o diálogo entre a comissária de bordo e o passageiro ameaçado de jejum, deve ser assim:
- Jantar, senhor?
- Quais são as opções?
- Sim ou não.
E nem falei nos forros pré-históricos das poltronas nessa mesma viagem. Achando que estava abrindo um compartimento, puxei uma ponta do forro da cadeira em frente à minha e ele se soltou, revelando por baixo uma tábua de madeira branca, onde outra parte do forro se colava com pedaços de fita adesiva (ou esparadrapo, não sei bem). Mais que depressa, pus de volta o forro, mas fiquei um pouco inquieto, tomado pelo receio, naturalmente errôneo, de que outras partes do avião estivessem mantidas com o mesmo padrão ou que as asas fossem de compensado. Isto eu não tinha contado, mas agora conto, para ir à forra do susto que levei com o tal standby. E manifesto a convicção de que por sorte não havia TAP na era das grandes navegações.
Mas, afinal, os voos em si foram tranquilos e sem turbulências e pude trabalhar na programação intensa que me reservaram, tanto na Bélgica quanto na Holanda. Nesta última, tenho um pequeno público curiosamente fiel. Num dos meus livros, traduzido para o holandês e lá continuamente reeditado, um personagem canibal que devorava portugueses e espanhóis experimenta papar um holandês e acha a carne dele infinitamente superior à ibérica. Os holandeses adoram essa distinção gastronômica e invariavelmente falam nela, felicíssimos. De resto, creio que, modestamente, não envergonhei nem o Brasil nem vocês, saí-me direitinho nas palestras e leituras que fiz. E desta vez foi bem mais fácil que em ocasiões anteriores, também na Europa. Para grande espanto meu, em nenhum dos eventos que realizei falou-se na Amazônia ou me fizeram perguntas sobre os índios. As conversas foram sobre literatura e cultura em geral e não ouvi nenhum comentário sobre como podia eu ficar escrevendo romances, enquanto o país tinha outras prioridades, como o combate à miséria, pois, para nós, atrasados ou primitivos, literatura era um luxo supérfluo a que os de consciência social não tinham direito. Acho que foi a primeira vez em minha vida, estamos fazendo progressos.
E, recém-retornado ao Brasil, assisto a um par de telejornais, leio jornais e revistas impressos e agradeço à Providência não ter tido de falar sobre muitas coisas que eu não saberia explicar. Sobressai entre elas a festiva transmissão de cargo no Ministério dos Transportes. Não posso saber se o ex-ministro é ou não inocente. Mas o fato é que se viu obrigado a sair sob acusações graves, que, examinadas, ainda podem revelar fatos até agora desconhecidos e também comprometedores. Não creio que fosse o caso de encenar-se aquela cerimônia festiva, com direito à presença da presidente, aplauso caloroso e discursos de propaganda partidária – só faltaram banda de música e foguetes. Bota-fora de primeira mesmo e, pelo menos para mim, difícil de entender e bem mais de explicar.
E, tocando nesse ministério, a gente se lembra das organizações não governamentais. Como é que uma organização é não governamental e depende de dinheiro do governo? É não governamental ou não é? Se recebe dinheiro do governo, é para fazer alguma coisa de que o governo precisa ou considera importante. Então não é não governamental; é, na minha modesta opinião, governamental e mantida com o dinheiro de nossos impostos, que já nos esfolam mais do que qualquer povo menos acarneirado suportaria. Ser não governamental e, ao mesmo tempo, ser sustentado pelo governo só aqui no Brasil mesmo, acho eu.
Tampouco me foi pedido para discorrer sobre uma notícia que saiu por lá, mas, àquela altura, ninguém nas plateias havia lido, a respeito de um deputado carioca ameaçado de morte, que vai, segundo noticiou, se não me engano, um jornal francês, buscar asilo na Europa, juntamente com a família. O jornal falou em exílio e seria muito difícil explicar como é que isso pode acontecer num país civilizado. Estamos mesmo completamente à mercê de qualquer grupo ou quadrilha armada?
E o Enem, que bom não ter de explicar as trapalhadas desse exame, do qual depende o destino de tantos jovens e no qual estão depositados tanto esforço, tantas esperanças, tanta angústia, tanta tensão e tanto sofrimento. Sei de países onde muito menos renderia uma revolta maciça e, seguramente, protestos de rua, talvez violentos. Não estou, é claro, defendendo atos violentos, mas não há desculpa para o vazamento de sequer uma pergunta e o Enem é um exemplo permanente de incompetência, que resulta em transtornos por vezes irreparáveis. E muito mais eu poderia lembrar. Estamos acostumados a suportar, calados e passivos, qualquer abuso, postura que infelizmente marca nossa história. Para isso eu não tenho explicação, nem aqui, nem em Bruxelas.
Talvez o caminho fosse o retorno da antropofagia que liberaria a nossa ira atávica.
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