quarta-feira, novembro 23, 2011
Conformistas sem causa - ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 23/11/11
Semana retrasada publiquei aqui um texto criticando os alunos que ocupavam a reitoria da USP. Ao terminar de escrevê-lo, me senti aliviado, como se houvesse tirado um peso das minhas costas. Nos dias que se seguiram, recebi uma quantidade enorme de e-mails elogiosos e, sobretudo, empolgados.
Quase duas semanas depois, mensagens continuam a chegar e meu alívio passou a ser pinicado por uma suspeita: será que não há um ânimo exagerado em nossa condenação àqueles estudantes? Sigo concordando com os argumentos que expus na coluna, mas percebo que no fundo de nossa -ou, vá lá, da minha- indignação, pulsa menos um incômodo do que certa felicidade; uma satisfação secreta diante dos jovens equivocados. Por quê?
Li neste domingo, numa "New Yorker" antiga, uma matéria sobre Rimbaud. O poeta francês que, entre os quinze e os vinte anos, mudou a história da literatura -e depois foi ser comerciante na África, sem jamais escrever novamente um único verso. Qual a explicação para um artista tão talentoso ter abandonado seu dom, tão cedo? Uma das possíveis respostas é colocada na boca de Verlaine -amante do "enfant terrible"- pelo romancista Bruce Duffy, no livro "Disaster Was My God": Rimbaud teria desistido da poesia simplesmente porque cresceu.
Sua escrita, embora formalmente impecável e laboriosamente trabalhada, dependia da rebeldia adolescente, da vontade de destruir as instituições e lugares comuns, de viver todas as experiências simultaneamente e fazer do próprio corpo o epicentro do mundo.
Quem aí já não teve sentimentos semelhantes, mesmo que em menor grau, em algum momento entre a primeira espinha e o primeiro holerite? Quem aí não sente, mesmo que em menor grau, que abandonou parte de seus anseios de juventude em troca do comércio -profissional, social, afetivo- da vida cotidiana?
A poesia de Rimbaud -como, aliás, toda grande poesia- nos lembra das infinitas possibilidades escondidas sob essa fina coberta que, com afinco, esticamos todas as manhãs sobre nossas ambições frustradas, nossos sonhos calados por covardia ou, pior, por preguiça.
Os jovens, vez ou outra, também ameaçam a frágil segurança de nossas certezas. Na semana passada, estiveram por quatro vezes na capa deste jornal: um rapaz descendo uma viela da Rocinha, com uma prancha de surfe embaixo do braço, uma turma banhando-se na lama, no festival SWU, garotos e garotas enfrentando a polícia em Nova York e Milão. Esportes radicais, rock'n'roll, revolta: mesmo que você ache tudo isso uma bobagem, impossível ignorar a centelha, a pergunta que nos fazem aquelas imagens: será que não nos acomodamos? Será que estamos tirando da vida o máximo que ela pode dar?
Aí é que, para nosso alívio, surgem os invasores da reitoria: ao vê-los, tão equivocados, podemos crer que toda rebeldia é burra, que sonhos são coisa de quem usa pochete e exibe fotos do Mao Tsé-tung. Satisfeitos, confirmamos nosso acerto, validamos a segurança da vida adulta contra as inquietações da juventude, a troca da poesia pelo comércio -profissional, social, afetivo-, que realizamos todos os dias.
Nada melhor que rebeldes sem causa para dar sentido ao nosso conformismo.
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