domingo, novembro 27, 2011

ARQUIVO G - MÔNICA BERGAMO



FOLHA DE SP - 27/11/11



Às vésperas de completar 70 anos, o cantor Gilberto Gil lança site com fotos, vídeos, cartas, bilhetes e partituras que compõem o acervo de toda a sua vida

Gilberto Gil está gostando de envelhecer. "A memória não é tão aguda, a gente não lembra mais de tanta coisa como antes. Tem muitas modificações de energia, de disposição geral. Pode ser sentido como perda, mas também como iniciação para um outro modo do ser."

A sete meses de completar 70 anos, em junho de 2012, ele diz que já está "vivendo a idade". E vê "novos ganhos, novas aquisições, novas configurações". Compara a juventude e a maturidade ao ruído e ao silêncio.

"Quando o ruído desaparece, deixa um vácuo, que é seguido pelo silêncio. E este preenche tanto quanto o ruído preenchia. É algo de outra natureza, que se constitui também como plenitude", diz ele ao repórter Diógenes Campanha. "Certos aspectos da atividade cerebral ganham outra forma de se apresentar. Fisicamente, não me sinto debilitado. Resumindo, estou gostando da velhice."

Todos os anos vividos por ele, ou ao menos aqueles registrados em uma foto, um bilhete, um desenho, um vídeo, uma letra, uma partitura, serão apresentados ao público. Entra no ar amanhã o acervo digital do artista. Um site (www.jobim.org/gil/) vai disponibilizar mais de 30 mil documentos de sua vida.

"Isso vem sendo construído há 15, 20 anos, quando a Flora [mulher de Gil] mandou encadernar minhas anotações. Ela vinha arquivando sistematicamente todo o material, correspondências, comandas." O acervo foi organizado pelo Instituto Tom Jobim, que já fez o mesmo com a obra do maestro, além de Dorival Caymmi e Chiquinha Gonzaga. O patrocínio é do projeto Natura Musical.

"O acervo contém uma parte relativa à vida pública, mas também a parte pessoal, como é a própria vida de todo mundo", diz Gil. "É um acesso desejado por nós, uma invasão benigna. Com Twitter e Facebook, é tão comum mostrar sua vida às pessoas que esse arquivo estático não chega a ser novidade."

Uma foto de 1992 mostra Gil rodeado por Flora, com quem está casado há 31 anos, e as três ex-mulheres, Belina de Aguiar, Nana Caymmi e Sandra Gadelha. Era o seu aniversário de 50 anos. "Minha relação com elas se deve muito à gestão da Flora. Quando chegou, ela compreendeu que isso era uma grande família da qual passou a fazer parte." A filha Preta já disse que vê o pai como um rei africano, que tem as mulheres em volta e delega funções à prole -os príncipes.

"Não é de todo equivocada. Deve ser genético." Quando tinha "dois, três anos", a mãe lhe perguntou o que queria ser na vida. "Falei que seria 'musqueiro', minha corruptela infantil para músico, e pai de menino." Gerou oito filhos em três casamentos.

Gil tirou a primeira foto da qual tem lembrança aos quatro anos. Foi levado pelos pais para um estúdio em Salvador. "As máquinas não eram portáteis, ficavam em uma sala. Era uma coisa meio ameaçadora, como ir ao consultório do dentista." O estúdio era "muito esmerado. Tinha um doce, um suco, pra gente ficar relaxado".

Voltou outras vezes ao local para cliques ao lado da irmã, Gildina. "Éramos muito ligados. Lembro da gente amassando barro no fundo do quintal. Moldávamos tijolos com caixa de fósforos e fazíamos pequenas edificações. E eu participava com ela das brincadeiras de boneca. Fazia comida e roupas." Foi com ela que Gil formou a primeira dupla musical, aos 11 anos. Apresentavam-se em concursos de cantores, ganhando prêmios como pinguins de geladeira, arranjos de flores e, às vezes, dinheiro. "Seriam cinco, dez reais hoje em dia."

Letras de música e repertórios de shows dividem o site com política. Em uma anotação, Gil enumerou referências a Ciro Gomes, adversário de Lula na eleição de 2002: "A indisposição da imprensa com o 'Ciro aluno de ACM'", "Ciro Malvadeza que agride jornalistas"; "A difusão da ideia de que 'Ciro mente'" e "Ciro clone de Collor". "Fiz pro meu próprio governo, para minha análise. Não é uma crítica mais aguda ou particular. Era uma sensação mais ou menos geral que havia em relação à sua candidatura. Gosto muito dele."

O ex-senador Antonio Carlos Magalhães, morto em 2007, aparece numa "carta aberta a um velho triste como eu". Era resposta a uma "carta queixosa" de ACM. "Ele disse que, ao contrário de mim, meu pai sempre foi correligionário fiel a ele." Gil diz ter "a impressão" de que o desentendimento ocorreu porque discordou de uma crítica de ACM à nomeação de Pelé como ministro do Esporte no governo FHC. "Nossas divergências eram em questões técnicas, não afetivas."

Já ministro da Cultura, recebeu carta de ACM pedindo apoio a um livro sobre as igrejas da Bahia, "porque sei que os assuntos de nossa terra têm não só sua boa vontade como também a prioridade". "Um dia ele disse que eu precisava olhar mais a Bahia. Tinha uma série de projetos lá e fiz uma lista rápida. E ele: 'Precisa olhar ainda mais'."

Da Esplanada, Gil guardou memorandos, telegramas de aniversário de políticos da oposição, como Arthur Virgílio, do PSDB, e José Agripino, do DEM, e até um convite de Lula para um churrasco na Granja do Torto. Há uma carta de Condoleezza Rice, ex-secretária de Estado dos EUA, agradecendo por tê-la acompanhado ao Pelourinho, em 2008. Ela assinou como "Condi", riscou a saudação "Dear Mr. Minister [caro senhor ministro]" e substituiu à mão por "Gilberto".

"Tem modificações de energia, de disposição. Pode ser sentido como perda, mas também como iniciação para um outro modo do ser"

GIL, sobre a velhice

Nenhum comentário:

Postar um comentário