domingo, outubro 02, 2011

UGO GIORGETTI - A bola cruzada


A bola cruzada
UGO GIORGETTI 
O Estado de S.Paulo - 02/10/11

Tempos houve em que o escanteio não era tão perigoso assim. Havia grandes cabeceadores, claro. Sempre houve. Mas a maneira de neutralizá-los era mais eficaz. Além disso, não havia a verdadeira batalha campal que se estabelece hoje no interior da área com cotoveladas, encontrões, trombadas e deslocamentos, sob as vistas de todos os juízes, cuja passividade introduziu essa nova arma no futebol. Isso trouxe outro efeito colateral: o grande cabeceador ficou completamente desnecessário, porque quem faz gol nos escanteios é qualquer um. Literalmente qualquer um, inclusive os zagueiros que tentam defender. Falo escanteio para simplificar. Qualquer bola cruzada para a área hoje em dia é quase mortal.

Talvez as mudanças na própria bola estejam entre as causas da transformação. Parece que mudou em peso e consistência, permitindo uma precisão maior por parte de quem cruza. E nesse quesito, sim, houve mudança. Ou melhor, ela foi chegando sem que se notasse muito a sua presença: a habilidade em cruzar uma bola para dentro da área. Antes ela vinha em geral alta. A bola subia e caia quase verticalmente. Essa trajetória longa dava tempo para a defesa se colocar e para os zagueiros calcularem onde a bola ia cair.

Por isso os "centros'' eram chamados chuveirinho. Era uma jogada manjada e de enorme pobreza: quem jogava no chuveirinho tinha poucas chances de fazer gol. Hoje, a bola vem rasante, cheia de efeito e de curva, não na direção de alguém, como um Claudio que procurava um Baltazar, ou Ney que procurava Leivinha, mas na direção do bolo, da confusão na boca do gol. É impossível prever a trajetória e onde bate é perigo.

Para os goleiros essas bolas cruzadas devem ser um tormento. Não sabem se saem ou se ficam, não sabem onde a bola vai bater, frequentemente nem bate, apenas resvala sutilmente em alguém, o suficiente para tirá-los completamente da jogada. Os goleiros cansam de berrar para que se evitem as faltas, e, de fato, a maioria das faltas é mais perigosa do que o lance que um zagueiro menos inteligente resolveu interromper.

A defesa não é mais pega de frente para a bola em nenhuma circunstância, nem quando a falta é frontal. Batedores hábeis colocam sempre onde querem, forte, numa altura baixa suficiente para ser alcançada ou desviada. E os batedores ficaram sendo as verdadeiras estrelas. Não há um só time que dispense esse carrasco. Todas as equipes têm hoje os especialistas que permanecem em campo, depois dos treinamentos, batendo faltas e faltas. Não mais em direção do gol, como faziam antes, mas faltas colocadas no ponto fatal. Treinam para bater certo na bola, para fazer de qualquer falta uma jogada mortal.

Alguns treinadores usam essa arma há tempos, muito antes que os demais. Usaram e abusaram de centroavantes grandalhões e laterais talentosos no bater na bola. Amontoavam seus times na defesa e depois contavam com a perícia do batedor e os gigantes na frente. Assim foram construindo reputações e conquistando títulos. E há mérito nisso. Cada um luta com o que tem. Se o elenco só dá pra isso, vamos com isso.

Agora, a novidade ficou velhíssima. Acabaram aqueles bons tempos em que um time fazia um gol e depois podia se colocar na defesa, pois não teria mais problemas. Todos os times se tornaram perigosos. Nesse sentido quase todas as partidas de placar mais ou menos apertados ficaram emocionantes. É quase visível o desespero do time que está ganhando nos minutos finais, torcendo para ninguém fazer falta depois do meio do campo. A torcida já se acostumou com esses momentos difíceis.

Alguns times fazem mais uso disso que outros. Mas todos têm seus truques nas bolas paradas, mortais. Mesmo times como o S. Paulo, que tem no seu goleiro temível batedor de faltas direto para o gol, mostrou contra o Botafogo que ele também tem habilidade para meter a bola no meio do bolo e esperar pelo melhor. Nos minutos finais saiu a falta salvadora, mas Rogério não bateu para o gol. Em outros tempos talvez até tivesse tentado. Agora há outros recursos.

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