sábado, outubro 15, 2011

RUTH DE AQUINO - Vida pedestre



Vida pedestre
RUTH DE AQUINO
REVISTA ÉPOCA

A morte sobe à calçada em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis

RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
Rosany Calazans foi casada com Rudolf Lessak por duas décadas. Ela tem 49 anos e acorda tarde, às 9 horas. Ele tinha 80 anos, acordava às 6 horas da manhã, era faixa preta de judô, fazia trilha e natação, tinha 1,92 metro de altura e 90 quilos. Ele está no passado porque se foi abruptamente deste mundo quando caminhava na calçada com a mulher, no Itanhangá, perto do condomínio Floresta, um lugar muito verde no Rio de Janeiro, para onde o casal se mudara havia nove anos em busca de sossego.
Uma picape Nissan Frontier 4x4 subiu a calçada e capotou, arremessando Rudolf a quase 10 metros de distância. Ele morreu na hora. Seu corpo salvou sua mulher. Rosany caiu sem respirar direito, mas as dores físicas já passaram. A dor da alma é que não passa. O carro, quase um trator, de 2 toneladas, atingiu seu marido pelas costas, virou de lado e encalhou fumegante. A avenida é uma reta. A velocidade máxima permitida, 40 quilômetros por hora.
Juliana Vilela, de 26 anos, morena bonita de cabelos compridos, dirigia o Nissan Frontier de R$ 80 mil que pertence ao pai, militar da Marinha. Ela não tem carteira de habilitação. Eram 8h30 de uma manhã ensolarada no domingo passado, Juliana estava vestida com minissaia curta preta, blusa escura e salto alto. Saiu do carro sem ferimento. Telefonava freneticamente no celular, não para chamar os bombeiros ou a ambulância, mas para avisar mãe, irmão, amigos. Perguntou a testemunhas: “Morreu alguém?” Quando confirmaram, Juliana jogou o sapato no carro e saiu correndo descalça para o condomínio em que mora com os pais.
“Ela está fugindo”, Rosany escutou. E correu atrás da atropeladora. Juliana entrou no prédio e voltou ao local do acidente de figurino matinal: shortinho, camisa listrada e chinelo baixo. Só sete horas depois, na 32ª DP, da Taquara, Juliana se submeteu a “um exame clínico para constatação de embriaguez”. Não passa de um teste de reflexos e equilíbrio. Ela fez o “quatro”, abaixou, levantou. Deu negativo. É brincadeira. Só no Brasil. Não é preciso ser médico para saber que esse exame não prova nada após sete horas. Já para o delegado que preside o inquérito, Mauricio Mendonça, “depende do organismo de cada pessoa”. Ah, sim. Como anda mesmo a Lei Seca no Rio?
Perguntei ao delegado se a atropeladora fez exame de sangue para detectar álcool ou outras substâncias no organismo. “Não”, disse, “porque ela se recusou.” Usou um direito constitucional, mas, ao agir assim, reforçou a suspeita de que voltava de uma balada. Um ser humano de boas intenções que mata alguém por fatalidade até exigiria exame de sangue para provar que não estava alcoolizado ou drogado.
A morte sobe à calçada em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis 
Primeiro, Juliana disse aos policiais que tinha cochilado ao volante. Mas, como era esquisito dormir dirigindo de manhã ao sair “para comprar pão” – como consta em seu depoimento oficial –, a versão escrita ficou mais sofisticada, atribuindo a culpa a um terceiro que ninguém conhece, ninguém viu. “Uma van fez uma manobra irresponsável e a fez perder o controle, subindo na calçada”, disse o delegado. “Mentira”, disse a viúva. Agora, o advogado de Juliana marcará data para novo depoimento.
Rosany ainda não tem advogado. Enquanto Juliana se preparava para escapar de seis anos de prisão por matar um pedestre, na calçada, sem direito de dirigir, Rosany cuidou de burocracia e luto. Enterrou o marido no cemitério junto ao sítio do casal, na serra de Nova Friburgo. Ele estava com seu quimono e a faixa. Eram os desejos dele, mas o de Rosany era que o marido chegasse aos 100 anos com saúde. “Era mais do que amor”, disse. Ela não tem filhos e não consegue mais nem pensar se deseja comer. Não acredita em justiça porque a família da atropeladora é poderosa no local, tanto que as testemunhas lhe disseram que adorariam depor, mas têm medo.
Tentei falar com Juliana. Atendeu sua mãe. “Ela não está.” Eu me identifiquei como jornalista. “Ela não vai falar.” Por quê? “Porque não. Vocês distorcem tudo.” Disse a ela que o telefonema estava sendo gravado. “Ótimo”, respondeu com arrogância, “adorei.”
Segundo o Denatran, que só registra mortos no local, atropelamentos matam 6.303 no Brasil por ano. Nos cálculos do Ministério da Saúde, o total sobe para 8.522, o que significa um atropelado morto por hora no país. Cada vez mais a morte sobe às calçadas em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis. Em São Paulo, numa noite de sábado no mês passado, um motorista alcoolizado invadiu a calçada em frente ao Shopping Villa-Lobos e matou mãe e filha. Difícil chamar isso de “acidente”.
Juliana não tem medo. Nada vai acontecer com ela. Nem mesmo perder o que já não tinha, a carteira de habilitação.

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