segunda-feira, outubro 03, 2011

MARIA INÊS DOLCI - Copa de oportunidades perdidas


Copa de oportunidades perdidas 

MARIA INÊS DOLCI
FOLHA DE SP - 03/10/11

Um dos graves problemas do país é que, no governo, os técnicos dão lugar aos companheiros políticos


O atraso nas obras de infraestrutura para a Copa do Mundo de 2104 e para os Jogos Olímpicos de 2016 confirma uma triste realidade para os brasileiros: não há muita esperança de que os serviços de interesse público melhorem, consideravelmente, nos próximos anos.

Isso fica ainda pior com a confidência, na sexta-feira passada, do ministro do Esporte, Orlando Silva, de que a Fifa (órgão máximo do futebol mundial) exigiu a interrupção da vigência do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto do Idoso e do direito à meia-entrada para estudantes durante a Copa do Mundo. Pode ser que "hoje" o governo tenha descartado essa ameaça aos direitos do cidadãos. Mas demonstra uma tendência muito perigosa.

Se nem a perspectiva de ter os olhos do mundo, literalmente, voltados para o país consegue quebrar a inércia dos governantes, o que o fará? Agora, diante da iminência de não fazerem as melhorias indispensáveis, as autoridades "descobriram" que, bem, tudo está certo nos aeroportos.

Qualquer pessoa que tenha viajado em períodos de férias e feriadões sabe que, na verdade, há muito mais passageiros do que conforto, espaço e bom atendimento.

Talvez a ideia de decretar feriado nos dias de jogos amenize os problemas de transporte, principalmente nas cidades mais populosas que serão sedes da competição, como São Paulo e Rio.

É lamentável, contudo, que se percam oportunidades como essa por incompetência e por desinteresse.

Afinal, há quatro anos fomos informados, festivamente, de que o Brasil sediaria a Copa.

O que foi feito de lá para cá? Acima de tudo, marketing, ufanismo e proselitismo político.

Perdeu-se um tempo precioso com a definição das 12 cidades-sede, obviamente devido a disputas políticas para escolher as localidades. Falou-se muito, mas quase nada saiu do papel.

Exemplo de discussão estéril foi a do trem-bala. Um factoide que provocou muita discussão. E foi só isso! Não por acaso, ministérios como o dos Transportes e o do Turismo, essenciais para que o sucesso na organização dos megaeventos esportivos que serão realizados por aqui, foram alvos recentes de denúncias de malversação de recursos públicos.

Ninguém ignora que um dos tormentos do cidadão brasileiro seja a péssima qualidade de praticamente tudo o que tenha a qualificação "público": transporte, saúde, segurança e educação. Os serviços fundamentais -energia elétrica, telefonia fixa e móvel, acesso à banda larga- são muito ruins.

Paulistanos levam até cinco horas para ir ao trabalho e voltar para casa, diariamente -um crime contra a qualidade de vida.

Recentemente, foi divulgado que nossa velocidade média de acesso à internet é pior do que a de países muito pobres, como Haiti e Nigéria. Ou do que nos abalados por guerras intermináveis, como o Afeganistão. Empatamos com o Iraque.

Pagamos tarifas de luz e de telefonia que estão entre as mais caras do mundo. Isso não evita apagões, interrupções e outras dores de cabeça aos consumidores.

Nossas agências reguladoras trabalham com afinco para defender os interesses das empresas.

O cidadão fica sempre em segundo plano, exceto no papel de contribuinte -já repassamos, neste ano, mas de R$ 1 trilhão em tributos aos cofres públicos.

Para não dizer que nada decorrerá da Copa de 2014, os paulistanos ajudarão, independentemente do clube para o qual torçam, a bancar o estádio do Corinthians. Dinheiro que poderia ser mais bem aplicado em escolas, em creches, em hospitais ou em estações do metrô. Investimentos que, talvez, valham menos votos do que os obtidos por um estádio particular de um time.

Por que não conseguimos fazer o que é tão importante para os brasileiros, mesmo sob o estímulo de competições que seriam vitrines excelentes para mostrar um momento mais positivo do Brasil?

Porque técnicos são preteridos na área governamental em detrimento de companheiros políticos. Além disso, não há ação clara das autoridades dos três Poderes em defesa dos direitos do consumidor.



MARIA INÊS DOLCI, 56, advogada formada pela USP com especialização em "business", é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores.

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