segunda-feira, outubro 17, 2011

LÚCIA GUIMARÃES - Tamanho é documento


Tamanho é documento 
 LÚCIA GUIMARÃES
O ESTADÃO - 17/10/11

A polícia de Nova York já registra 20 casos de ataques sexuais a mulheres no Brooklyn; num deles o agressor conseguiu estuprar a vítima. A prisão de um homem latino de 26 anos não trouxe tranquilidade ao bairro porque os policiais suspeitam que pelo menos mais três homens possam estar envolvidos nos ataques, desde março.

Há um padrão nos crimes - o homem se aproxima por trás da mulher que sai de uma estação do metrô à noite e aperta sua garganta. Várias mulheres conseguiram evitar o estupro porque gritaram e correram. As delegacias do Brooklyn não registraram nenhum caso de vítima que se rendeu, agradecida porque era considerada feia. Nenhuma deu "graças a Deus" por concluir que não havia sido vítima de um crime e sim de "uma oportunidade", contrariando uma tentativa de fazer humor sobre o estupro, publicada pela revista Rolling Stone brasileira, que bateu num iceberg de crassidade e afundou como o Titanic.

Aqui da capital do humor no continente, onde a pena afiada de um exército incomparável de redatores faz justiça à linhagem que começou com Mark Twain, mal consigo ensaiar um sorriso amarelo diante do que se considera a emergência de um tipo de humor em português. E não consigo entender porque escrever bem, com inteligência, e não humilhar - tanto os humildes quanto os poderosos - é uma expectativa politicamente correta. Alhos com bugalhos, é o que me parece esta discussão que mistura a repressão boba ao comercial da Gisele Bündchen aos limites da civilidade no humor.

Em 1996, perguntei a Woody Allen, que estava na minha frente gripado e, portanto, de mau humor, se havia algum limite para o tema de uma piada. Ele disse que não. "Você pode fazer piada sobre tudo, até câncer." Não entendi tão bem na época quanto entendo hoje. E concordo plenamente com Woody Allen. Mas, além de ser um grande escritor de humor, Allen não tenta humilhar seu público.

Alguém se lembra da cena lamentável em que o alquebrado ator Charlton Heston sofre uma emboscada de Michael Moore em Tiros em Columbine? O diretor precisava recorrer à desonestidade para colocar na tela seu argumento contra as armas de fogo? Para os que discordam, sugiro alugar o DVD de Sob a Névoa da Guerra, de Errol Morris, uma denúncia magistral da guerra que não cede nenhum território à integridade do diretor.

Mas voltemos ao humor. O humor que denuncia hipocrisia ou a malfeitoria política pode ser muito mais do que hilariante. É uma arma poderosa nas mãos de quem conhece a própria língua e não tem a ilusão de que a condição de artista de performance suspende sua humanidade.

Na nossa cultura cartorial, onde o impulso é legislar sobre tudo, criticar vira sinônimo de reprimir. Mediocridade atrevida pode ser confundida com rebelião.

E, como sói acontecer entre nós, êta povo novidadeiro, somos levados de enxurrada por tudo o que está "trending". Não uso a igualmente significativa palavra tendência porque, assim como "moda", um substantivo mais do que eficaz, foi ridiculamente aposentado por "fashion", como se a nossa semântica estivesse bichada, falar em "trending" é o sinal de que você está se referindo ao Twitter ou alguma mídia social. E, desta diferença entre tendência e trending, surge a questão que, ao contrário do "vascularizado" membro cuja descrição não solicitada foi oferecida a uma jornalista brasileira, continua presa no zíper da braguilha: nosso pavor da exclusão. Perder patrocinadores, perder seguidores no Twitter, perder a berlinda disputada no topo do "trending" - são temores que parecem cancelar nosso senso de história, pessoal ou coletiva e, no fim das contas, nossa independência de opinião.

Um falecido humorista brasileiro, que faria a barba, o cabelo e o bigode de qualquer contemporâneo, cunhou um oxímoro delicioso para descrever sua desconfiança de celebridades da palavra. "Basta ler meia página do livro de certos escritores para perceber que eles estão despontando para o anonimato", dizia Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto. No neo-elitismo do Brasil, onde tendência virou trending, o anonimato é uma lepra e a celebridade viral uma nova forma de intimidação.

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