Zero e um
VLADIMIR SAFATLE
FOLHA DE SP - 06/09/11
Há tempos, as pesquisas em inteligência artificial procuram criar um computador que tenha a complexidade de um cérebro humano.
Bem, certos setores do debate nacional de ideias conseguiram o inverso: criar cérebros que parecem mimetizar as restrições de um computador. Pois eles são como hardwares que suportam apenas um pensamento binário, onde tudo é organizado a partir de "zero" e "um".
De fato, o Brasil tem de conviver atualmente com debates onde o mundo parece se dividir em dois. Não há nuances, inversões ou possibilidades de autocrítica.
Jean-Paul Sartre costumava dizer que o verdadeiro pensamento pensa contra si mesmo.
Este é, por sinal, um bom ponto de partida para se orientar em discussões: nunca levar a sério alguém incapaz de pensar contra si mesmo, incapaz de problematizar suas próprias certezas devido à redução dos argumentos opostos a reles caricatura.
Afinal, se estamos no reino do pensamento binário, então só posso estar absolutamente certo e o outro, ridiculamente errado. Daí porque a única coisa a fazer é apresentar o outro sob os traços do sarcasmo e da redução irônica. Mostrar que, por trás de seus pretensos argumentos, há apenas desvio moral e sede de poder.
Isso quando a desqualificação não passa pela simples tentativa de infantilizá-lo. Alguns chamam isso de "debate". Eu não chegaria a tanto.
Infelizmente, tal pensamento binário tem cadeira cativa nas discussões políticas.
Se você critica as brutais desigualdades das sociedades capitalistas, insiste no esvaziamento da vida democrática sob os mantos da democracia parlamentar, então está sorrateiramente à procura de reconstruir a União Soviética ou de exportar o modelo da Coreia do Norte para o mundo.
Se você critica os descaminhos da Revolução Cubana ou a incapacidade da esquerda em aumentar a densidade da participação popular nas decisões governamentais, criando, em seu lugar, uma nova burocracia de extração sindical, então você ingenuamente alimenta o flanco da direita.
Esse binarismo só pode se sustentar por meio da crença de que nenhum acontecimento ocorrerá. Tudo o que virá no futuro é a simples repetição do passado. Não há contingência que possa me ensinar algo. Só há acontecimento quando este reforça minhas certezas.
O resto é "fogo-fátuo" e conspiração. É possível encontrar modelos desse raciocínio à esquerda e à direita. No entanto não precisamos de nenhum deles.
Precisamos de um pensamento com a coragem de admitir acontecimentos que nos desorientam. Pois -e este é um dos elementos mais impressionantes da vida- quando fechamos os olhos para tais acontecimentos, eles, de fato, desaparecem.
Muito bom!
ResponderExcluirÉ o "discurso da destruição" que vivemos atualmente. Não há espaço para o debate porque o outro é o "inimigo" que precisa ser destruido, custo o que custar, por qualquer meio possível. Contemporizar é abrir flancos, é preciso atacar sempre.
ResponderExcluirNão é a toa que o tema do "é preciso destruir o inimigo" esteve no discurso de lideres da direita e esquerda nos últimos anos.
Eu preciso encontrar esse cara e dar um abraço nele.
ResponderExcluir