segunda-feira, setembro 05, 2011

LÚCIA GUIMARÃES - Saudosismo


Saudosismo
LÚCIA GUIMARÃES
O Estado de S.Paulo - 05/09/11

NOVA YORK

Não sei se foi a ameaça do furacão Irene, que nos fez tirar velas e lanternas do armário, encher baldes e pensar na contingência de faltar água e eletricidade. Ou, quem sabe, o cada vez mais popular governador de Nova York, Andrew Cuomo. Ao falar à população sobre os preparativos para o furacão, Cuomo teve a audácia de recomendar: "Vão ler um bom livro".

Ou, talvez, foi o clima de comunidade em Manhattan que me lembrou os apagões diários do verão carioca quando eu era menina. Apagão com hora marcada, no começo da noite, para mim, era o momento de não temer assaltos, ter a atenção incondicional dos adultos, colocar cadeiras na calçada, jogar conversa fora, fazer o tempo parar.

Saudosismo, aviso aos mais jovens, não é monopólio do passar dos anos. No meu dicionário, pode ser a nostalgia pelo que poderia ter sido, ou o que quase aconteceu outro dia.

Quem diria que George W. Bush poderia arrancar de mim um suspiro. Não precisa esfregar os olhos ou limpar a lente dos óculos. Sim, George W. Bush. Adivinhe quem deportou 1 milhão de imigrantes em 2 anos e meio de mandato, um aumento significativo sobre as deportações no governo anterior? Acertou quem disse Barack Obama, o presidente da esperança que, quando candidato, lamentava as pobres mães latinas que não podiam amamentar seus bebês, separadas dos filhos pela temida polícia da Imigração.

E o governo brasileiro na ditadura militar? Como é fácil fazer a lista de excrescências atribuídas à ditadura militar. Mas minha tempestade tropical de saudosismo andou revirando fatos incômodos. Como o prefeito Mike Bloomberg mandou a gente não sair de casa antes do Irene, passei um dia flutuando no ócio, este poderoso abridor de baús da memória. Lembrei do tempo em que palavras como massacre e genocídio acendiam a luz da indignação, fosse na calçada da Avenida Paulista ou nos corredores do Itamaraty. E me perguntei quem poderia, a esta altura, acomodar o sanguinário presidente sírio Bashar al-Assad? Errou quem pensou no general Garrastazu Médici.

Quando era estagiária numa redação, minha imagem da censura era verde-oliva. As coisas eram um pouco mais claras. Nós queríamos informar, a maioria queria ser informada e uma minoria uniformizada metia a tesoura. Hoje a fonte de medo na mídia não é um governo ilegítimo, mas uma corporação que possa cancelar a publicidade. O filtro da informação é invisível e muitas vezes autoimposto, sem que o clique da tesoura seja ouvido. Não estou com saudade dos uniformes, é claro, mas da definição dos papéis.

E a língua portuguesa? Será que voltaremos ao tempo em que "Nós pega o peixe?" não será o português ensinado num livro sancionado pelo governo, sob o pretexto de não ferir a sensibilidade dos que já são prejudicados pela falta de oportunidades e acesso à boa educação?

Num fim de noite, na semana passada, a Lizzie Bravo me mandou um link do YouTube, fui conferir e, por um momento, achei que estava voltando a um bom tempo. Havia a brava e talentosa musicista Joyce Moreno no comando e um elenco que incluía jovens de quem nunca ouvi falar. Então não é passado, pensei, porque, mesmo que a Joyce tenha a mesma cara ano após ano, aquela gurizada faz parte do futuro. Que alívio no presente. E que presentão da Joyce. A série No Compasso da História começou a ser exibida ontem no canal 14 da NET carioca (reprise da estreia na quarta-feira) mas, se prevalecer o bom-senso, há de migrar para outros Estados. Com 15 documentários de 1 hora e 150 canções que formam uma viagem pela história do Brasil, No Compasso da História é vitamina B12 na veia de quem recorre às memórias para acreditar no que vem por aí.

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