Atenção à verdadeira Cidade do Samba
ARTHUR DAPIEVE
O GLOBO - 23/09/11
Certo. Depois de décadas humilhada por más notícias, a cidade está lavando a égua com a sua escolha para sede das Olimpíadas de 2016, com a perspectiva de ser o principal centro da Copa de 2014 e com o retorno do pródigo Rock in Rio, cuja quarta edição carioca começa hoje. Negocia-se, ainda, para que ela sedie três finais consecutivas do ATP World Tour, tira-teima da temporada do tênis, de 2013 a 2015.
Certo. Na área da segurança pública, embora a médio prazo não sejam eficazes se não forem acompanhadas pela ocupação social, as UPPs são a única resposta a até hoje apresentar resultados, tanto práticos quanto na autoestima do Rio. Escrever que fracassaram por causa das recentes escaramuças na Maré, como li em artigo num jornal paulistano, é ou ingenuidade ou má-fé. Ninguém aqui se iludiu com uma vitória final.
Certo. Nem tudo é um mar de rosas também em setores menos traumáticos. O momento trouxe para a cidade uma carestia indecente, e o ufanismo dele decorrente às vezes resvala para um "ame-o ou deixe-o" no qual as críticas soam como heresias, o que cria um ambiente provinciano - e favorável à malversação de verbas públicas. É lícito, porém, que o carioca queira aproveitar a boa fase e deixar todo o passado para trás.
Todo? Errado. Existem passados e passados. O recente deve ser superado, embora não esquecido (para não ser repetido). O distante precisa ser preservado, mesmo se não tiver sido glorioso. A mais nova edição da "Inteligência Empresarial", revista trimestral do Centro de Referência em Inteligência Empresarial da Coppe/UFRJ, editada por Marcos do Couto Bezerra Cavalcanti e coordenada por Luiz Carlos Prestes Filho, levanta uma bola importante nessa hora de renascimento do ufanismo carioca.
O número 35 da publicação reúne artigos e uma entrevista - com a arqueóloga Tania Andrade Lima, do Museu Nacional - que tratam da necessidade de equilibrar desenvolvimento e preservação histórica. O primeiro tende a literalmente passar por cima da segunda, demolindo prédios importantes e redesenhando vizinhanças em nome do progresso de ocasião. Quase sempre sem consultar os habitantes da área afetada.
Os dois grandes protagonistas dessa "Inteligência Empresarial" são o Porto Maravilha e a Pequena África. O primeiro é o projeto lançado em junho de 2009 para a crucial revitalização da zona portuária dos bairros de Santo Cristo, Gamboa e Saúde, projeto inspirado em experiências bem-sucedidas em Barcelona (Port Vell) e em Buenos Aires (Puerto Madero), entre outras. Lá, áreas degradadas foram reurbanizadas, atraíram investimentos e passaram a gerar lucros para a economia das cidades.
Já a Pequena África foi uma área delimitada, grosso modo, pelas atuais avenidas Rio Branco, a leste; Francisco Bicalho, a oeste; por uma linha paralela à Presidente Vargas, quarteirões ao sul dela; e pelo recorte da própria Baía de Guanabara, ao norte. A região tinha esse nome - que soa simultaneamente preconceituoso e carinhoso, numa ambiguidade muito brasileira, aliás - por conta da grande quantidade de negros ali encontrados. Às vezes, de modo permanente: o cemitério de escravos fica na Saúde.
Com a chegada de D. João VI e da corte portuguesa da Europa, em 1808, toda a movimentação do tráfico humano deveria ficar longe dos olhos da elite branca do Rio. Portanto, quando chegavam da África, os escravos passaram a desembarcar no Cais do Valongo, na fronteira norte da Pequena África, e não mais na Praça XV, bem central. Mesmo o Valongo, contudo, acabou sendo soterrado pelas obras do Cais da Imperatriz, por onde desembarcou a princesa Tereza Cristina para o casamento com D. Pedro II.
Tania Andrade Lima vê assim a missão de sua equipe nos 2.000 m² escavados: "Trabalhamos na arqueologia histórica com o propósito de sermos um antídoto contra amnésias sociais, buscando o resgate do que o tempo e a sociedade preferiram ocultar e esquecer. O Cais do Valongo é um exemplo concreto dessa amnésia social." Os negros foram as principais vítimas dessa memória seletiva, mas não os únicos. Em seu artigo na revista, o historiador Milton Mendonça Teixeira lembra que "em toda a extensão do Porto do Rio de Janeiro residiam, majoritariamente, negros, judeus, árabes e ciganos. Pobre e excluída socialmente, essa parcela da sociedade encontrava-se abandonada nesta área e era utilizada pelo poder político e econômico da época como mão de obra barata." O comércio popular da Saara é um resquício vivo dessas outras colônias.
A área correspondente à Pequena África é a verdadeira Cidade do Samba: ainda concentra, segundo os dados da "Inteligência Empresarial", 63 barracões de escolas adultas e mirins - além do próprio Sambódromo, não muito distante de onde ficava a lendária casa da Tia Ciata. Esta há muito foi posta abaixo, mas estão lá, aguardando reforma, preservação e valorização, as casas onde nasceram dois gigantes da cultura carioca, Machado de Assis (no Morro do Livramento) e Ernesto Nazareth (no Morro do Pinto). Compreensivelmente entusiasmado pelo Projeto Porto Maravilha, o poder público tem também o desafio de não ignorar a história do Rio em nome de uma modernidade asséptica. Nenhuma cidade conquista o futuro dando as costas ao passado.
Valeu pela dica!!!! Muito obrigado!!! E nos faz pensar!!!
ResponderExcluirNãp podemos nos esquecer do passado!
ResponderExcluirEsses lugares, principalmente onde viveram figuras tão ilustresdeviam ser preservados e fazer parte da rota turística carioca. sou cearense e moro no Rio a 08 anos, tenho sede de conhecimento dessa cidade tão importante na história desse país. Não se pode descartar o passado. Por acso uma parede se sustenta sem o alicerce?
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